Perfis e os desafios da Bourgogne

O coração de Khiem Le batia forte pelos Bordeaux até que, em uma noite de 1998, ele sentou-se no Carré des Feuillants, de Alain Dutournier, reputado pela sua extensa carta de vinhos com nomes de todas as regiões do Hexágono. Resolveu pedir o mítico Vosne-Romanée Cros Parantoux vinificado pela lenda Henri Jayer na safra 1987 por então 80 euros, uma fração do que custa hoje um dos mais caros rótulos do mundo do vinho. Toda vez que o sommelier servia um pouco na taça, uma dúvida martelava em sua cabeça: 1987 era uma safra menor na Bourgogne, como era possível o vinho ter tudo aquilo que ele sentia? Ao fim da refeição e da garrafa, a magia tinha tomado conta e ele tinha trocado Bordeaux pela Bourgogne.

A partir daí, ele se lançou aos livros. Comprou os livros de Remington Norman e Clive Coates, fez uma lista de produtores que poderia visitar. Telefonou para muitos deles, mas a resposta era quase sempre a mesma. Eles já estavam com todos os vinhos vendidos. Não desistiu. Tudo mudou em 1996, quando qualidade e quantidade rimaram na Côte d´Or, e as portas de Angerville, Gouges, Lafarge, Mugnier et Roumier se abriram. Com quase duas décadas visitando regularmente a região, Khiem Le dedicou dois anos e meio para escrever um livro reunindo cerca de 20 perfis do primeiro time de produtores locais, como Ramonet, DRC, Rousseau, Mugnier, Roumier, Dauvissat, Raveneau. À venda, na versão em francês (https://www.amazon.fr/Patrimoine-Extraordinaire-Vignobles-Bourgogne-Histoires/dp/2862536989), Le acaba de terminar a versão da obra para o inglês, em que o livro ganhou algumas histórias a mais. Espera publicá-lo nesse ano, diante do crescente interesse de leitores nas redes sociais. Está à espera apenas de uma editora. A seguir trechos de sua entrevista:

PISANDO EM UVAS: O senhor publicou um livro com cerca de duas dezenas de produtores da Bourgogne. Faltou alguém?

KHIEM LE: Faltaram duas famílias míticas no livro: Jean-François et Raphaël Coche, do Domaine Coche-Dury (reputado como um dos maiores produtores de vinhos brancos do mundo, com destaque para o raro Corton Charlemagne) e Lalou Bize-Leroy (Domaines Leroy e Auvenay).  Raphaël, filho de Jean-François, disse que ele era jovem demais para estar no livro. Quanto à madame Leroy, ela não gostou da primeira versão do meu perfil dela que lhe mostrei. Não estava realmente bem escrito, mas eu acho que ela o considerou pessoal demais. Então ela se retirou do projeto, uma pena, já que ela contou várias histórias inrteressantes e emocionantes. Um trecho que ela me contou: “Eu amava o vinho, mas queria me tornar uma guia que trabalhasse nos Alpes, ter um pequeno hotel e morar na montanha. Meus parentes me levavam frequentemente esquiar e aí veio o meu amor pela montanha. Eles aceitaram minha escolha e disseram que eu deveria estudar em uma escola de hotelaria suíça. Fomos então para Lausanne, onde eles me matricularam na Escola de Hotelaria. Em seguida, meu pai leu o conteúdo de ensino com minha mãe e disse, de um ponto de vista intelectual, eu não estava fazendo grandes progressos. Então ele começou a chorar e disse que que eu seria livre para ir à montanha quando eu quisesse, quantas vezes quisesse, que ele não me impediria. Eu adorava meu pai. Disse a ele que ele tinha ganho e que iria voltar a Meursault com ele. Nós nos desculpamos com a diretora da Escola e, em 2 de abril de 1955, eu comecei a trabalhar no Domaine Leroy. Meu pai queria eu perto dele. Ele sabia que eu degustava bem e que eu amava o vinho.

PISANDO EM UVAS: O Clos de Tart, com 7 e meio hectares, foi vendido por astronômicos 250 milhões de euros. Isso é um problema para a região?

KHIEM LE: Esse é um dos grandes desafios para os domaines familiares. Quando eu escrevia meu livro, os produtores citavam como referências valores de quatro a oito milhões de euros por hectare. Com a venda do Clos de Tart, chegamos a mais de 25 milhões de euros. E Clos de Tart está no nível de Clos de la Roche ou Clos Saint Denis, o que nos permite considerar que terroirs como Bonnes Mares, Romanée-Saint-Vivant, Richebourg ou Chambertin custam ainda mais caro. Essa alta de preços tem três efeitos. Os dois primeiros estão ligados à tributação na França. Primeiro: o governo francês taxa com vigor as heranças de vinhedos, a taxa é de 30% de um pai para o filho e mais alta se o parentesco é mais distante). Isso pressiona com que os filhos do viticultor tenham de se endividar ou então vendam uma parte das vinhas a cada vez que há uma transmissão de bens entre duas gerações. Segundo: a França taxa as fortunas. Uma alta dos preços das vinhas infla o balanço dos proprietários e o imposto que eles têm de pagar. O produtor que explora e é dono está isento da cobrança, mas não os seus irmãos, irmãs e primos (também proprietários). Para ajudar sua família a pagar o resto do imposto, o produtor tem de elevar os dividendos, ou seja, aumentar o preço dos seus vinhos.

O terceiro efeito do círculo vicioso é que a alta dos preços pressiona os membros da família que não está à frente do negócio e que não têm relação com a terra a querer vender suas parcelas. É preciso considerar que o valor dos dividendos recebidos por ano é uma fração em relação ao preço das terras. Quem não ficaria tentado a vender para ganhar milhões de euros? Isso que aconteceu, infelizmente, no Bonneau du Martray (foi vendido no início de 2017 para os proprietários do californiano Screaming Eagles). E isso apenas começou. Nós veremos outros domaines familiares explodirem.

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