Entregue aos paraguaios – parte 2

Por Lucio Mattos

 

 

O edifício mais vistoso do microcentro é o Palácio de López, um complexo rosado encomendado pelo aspirante a Napoleão paraguaio, o comandante que levou o país à catastrófica guerra que dizimou mais da metade da população e custou um quarto do seu território, entre 1864 e 1870. As obras de construção do palácio levaram 30 anos para serem concluídas e não pararam nem durante o conflito (que nós chamamos de Guerra do Paraguai, mas por lá é conhecida como Guerra da Tríplice Aliança ou simplesmente La guerra del 70). Após a derrota, os móveis franceses ao estilo Luís XV que enchiam Solano López de orgulho deram lugar ao esterco de cavalo, nos sete anos em que o palácio serviu de quartel da cavalaria brasileira.

No relato que faz sobre a tomada de Asunción, em janeiro de 1869, o jornal portenho La Tribuna descrevia o cenário desolador: “Uma Asunción completamente abandonada e com suas ruas convertidas em um bosque foi ocupada no dia 2 por três batalhões do exército brasileiro e por uma parte da esquadra. Não havia ali alma vivente. Tudo o que se encontrou no dia da entrada foi um gato, na casa de um Sr. Gondra”.

Terminada em 1892, a estrutura abriga a Presidência da República paraguaia desde 1894 – visitas não são permitidas, algo informado com uma gentileza desconfiada pelos militares armados com fuzis e submetralhadoras que interpelam qualquer incauto a se aproximar dos jardins. Tirar fotografias não é problema, no entanto, fique à vontade.

A segunda referência arquitetônica da capital talvez seja o Panteón de los Héroes, uma versão mais modesta do túmulo de Napoleão no Les Invalides parisiense. Cercados pelo mármore, ali descansam os restos mortais do Soldado Desconhecido paraguaio e dos maiores comandantes militares do passado (incluindo Solano López, que apesar da participação decisiva na catastrófica aventura expansionista ainda conserva a posição de herói nacional).

Quem quiser se aprofundar um pouco mais na história paraguaia tem duas excelentes opções. A uma quadra do Palácio de López fica a Manzana de la Rivera, um complexo de nove casas dos idos de 1700 que foram restauradas e transformadas em um centro cultural. Em uma delas funciona o Museo Memoria de la Ciudad, que traça um panorama didático da evolução da cidade desde a fundação (em 1537), incluindo mapas antigos que mostram como o território paraguaio abarcava nacos generosos do Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul antes da guerra.

O Cabildo oferece outra exposição iluminadora sobre a relação do Paraguai com a imigração, no Museo de los Inmigrantes. Com a população dizimada, agricultura reduzida a quase nada, o gado e a produção industrial consumidos pela guerra, o governo paraguaio decidiu vender terras públicas a preços irrisórios depois de 1870 – e finalmente abriu-se aos imigrantes. Um dos episódios mais curiosos (e bem-sucedidos) de imigração foi a tentativa de ocupar a região do Chaco com menonitas de origem germânica, que vieram do Canadá e da Rússia nos anos 1920. Foram quase 30 mil ao longo do século passado, que ergueram cidades e construíram uma atividade agropecuária de respeito (quase três quartos do leite consumido no Paraguai atualmente é produzido por seus descendentes).

Empanada de huevo, Lido Bar e os Romeritos

Depois da decepção do almoço no Bossi, o Bar San Roque me ofereceu redenção completa naquela mesma noite. Apesar do nome, trata-se de um restaurante (talvez o mais tradicional de Asunción), que durante mais de 50 anos teve a figura do proprietário atrás do balcão, Don Francisco Knapps, falecido em 2005. Descendente de alemães, ele arrendou o ponto em 1947, junto com o pai, e desde então se estabeleceu como referência para milanesas, bife a caballo e as incríveis empanadas de huevo.

É um daqueles raros lugares em que a comida é boa (a empanada de huevo foi a melhor coisa que eu comi em Asunción) e os garçons atendem com discreta eficiência e distinta elegância (trajando terno e gravata). No Bar San Roque ainda se serve chopp como deve ser: em canecos de cerâmica que conservam a bebida gelada por mais tempo. O restaurante fica a menos de uma quadra da Plaza Uruguaya (esquina das ruas Eligio Ayala e Tacuary).

Para se aprofundar nas especialidades paraguaias, dirija-se ao Lido, uma mescla de bar e restaurante, bem em frente ao Panteón de los Heroes (esquina das ruas Palma e Chile), que funciona desde 1953. Ocupe uma mesa ou sente-se na barra mesmo – ali você será atendido diretamente por amáveis señoras paramentadas com avental e touca, solícitas em explicar no que consiste cada item do extenso cardápio. Além das empanadas, provei ali o mbeju, herança guarani que me pareceu um cruzamento de tapioca com o nosso pão de queijo. Além da yuca (tapioca, para nós), a mistura leva farinha de milho, leite, ovos e queijo, preparada em uma panelinha de ferro parecida com as que se usa para fazer tapioca no Brasil.

Assim como Argentina e Uruguai, o Paraguai tem hábitos carnívoros de respeito. O destino para um bom asado paraguayo é o Lo de Osvaldo, duas quadras distante da Plaza Uruguaya (Cerro Corá, 883). As paredes internas do casarão antigo e o entorno do pátio central onde fica a parrilla são decoradas com camisas de futebol e fotos que contam a história do futebol paraguaio. Mas o que mais chama a atenção é o escrete de garçons que circulam pelas mesas, todos uniformizados com a albirroja da Seleção Paraguaia – a mim pareciam um exército de Romeritos, o craque paraguaio que marcou época no Fluminense nos anos 1980 e disputou a Copa do México em 1986. Prepare o bolso e o estômago.

Defensores del Chaco

Quem gosta de futebol não deve desperdiçar a chance de assistir uma partida no Estádio Defensores del Chaco, palco de pelejas históricas da Seleção Paraguaia e dos locais Olímpia e Cerro Portenho em inúmeras Libertadores de América. A cancha é antiga (começou a ser construída em 1917) e apresenta sinais visíveis de deterioração – independentemente disso, tem uma atmosfera que já não se vê mais na elite do esporte no Brasil, simples como o futebol costumava ser.

O estádio fica a cerca de 3 quilômetros do microcentro, no bairro de Sajonia, que lhe dava nome até 1974, quando foi renomeado em homenagem aos ex-combatentes da guerra com a Bolívia. O Defensores del Chaco já foi um ambiente extremamente hostil para os visitantes, com frequentes arremessos de pilhas e outros objetos em direção ao gramado, mas hoje o que se vê é algo bem mais civilizado. Todos os setores são equipados com cadeiras (embora os ingressos não garantam local marcado) e desde a reforma para as Eliminatórias da Copa de 2002 a capacidade foi reduzida para 42 mil lugares.

Os ambulantes com refrigerantes e hamburguesas dividem espaço com os vendedores de chipas (uma espécie de pãozinho feito de farinha de mandioca, ovos e queijo), que circulam equilibrando seu carregamento na cabeça. Os ingressos são acessíveis (uma entrada ao que equivaleria ao setor de arquibancada no Brasil custa em torno de R$ 30) e o cenário interno é deslumbrante – especialmente ao fim do dia, quando a luz do sol se pondo no rio Paraguai tinge tudo de laranja.

Registros perigosos e dólares manchados

Asunción é uma cidade razoavelmente segura e no microcentro, em especial, se vê muitos policiais nas ruas. O maior risco para quem caminha pela capital é não prestar atenção onde pisa. O antiquado sistema de medidores de água das casas de toda essa área fica em frente aos edifícios – sob as calçadas, mais exatamente, cobertas por tampas de metal que deveriam manter o piso nivelado. O problema é que muitas dessas tampas (de tamanho perfeito para encaixar um pé de tamanho médio) não estão mais ali, criando uma sequência infinita de buracos que são verdadeiras armadilhas para o pedestre.

Circular durante a madrugada pelo microcentro também exige certo cuidado. Nessas horas as ruas mais escuras são domínio de pequenos bandos de meninos de rua como o de Dany Satán e Cachaquita, descrito por Bernardo Neri Farina no seu premiado Fogo Pálido. Quando a coisa se põe hendy cavaju resa (uma expressão em guarani que significa “os olhos do cavalo estão acesos ao máximo”, ou seja, quando a coisa está extremamente má e a fome aperta de verdade), esses pobres mita’i saem a pirañear. A estratégia é promover uma espécie de arrastão-relâmpago que pode deixar um visitante incauto com uma mão na frente e outra atrás. A quem arregalou os olhos ao ouvir isso, deixo a pergunta: você sairia a caminhar por uma rua vazia e mal iluminada do centro de São Paulo ou do Rio de Janeiro, em horário semelhante? Assim sendo, vá de táxi ou de Uber, que também opera na cidade.

Outra dica valiosa para quem visita Asunción relaciona-se ao câmbio. A cidade tem inúmeros bancos e financeiras que trocam moeda, mas há uma pegadinha. Passei por essa situação em quatro estabelecimentos diferentes – todos rejeitaram uma nota de cem dólares que eu tentava trocar por guaranis, o dinheiro paraguaio. A razão para a recusa foi sempre a mesma: a presença de uma pequena mancha feita a caneta em um dos cantos inferiores da parte de trás da cédula.

Na última casa de câmbio um atendente mais solícito me ofereceu a explicação. Os grandes bancos de Asunción se mancomunaram para estabelecer a prática mafiosa de não aceitar em depósito notas de dólares mais antigas, com manchas ou qualquer outro defeito. Ele me disse que houve um tempo em que as casas menores ainda cambiavam cédulas nessas condições, mas haviam desistido pela dificuldade de depois fazer chegar aos cofres dos bancos o dinheiro americano. A razão? As grandes instituições financeiras passaram a cobrar um deságio das casas menores no momento do recolhimento – ou seja, estabeleceram uma surreal taxa de câmbio para trocar dólar manchado por dólar limpo.

O diminuto tamanho da mancha na minha nota e o fato de que a cédula tinha vindo comigo do Brasil me levou a duas especulações. Uma, que os próprios bancos podem estar marcando as notas, para garantir a cobrança do deságio. A segunda, que os paraguaios mais safos resolveram o problema levando essas notas para trocar no Brasil.

Há uma solução simples para contornar a questão: leve reais em vez de dólares ou euros. A taxa de câmbio é semelhante e a moeda brasileira pode ser trocada (e é até aceita em muitos estabelecimentos), mesmo que as cédulas estejam em mau estado. Também é possível sacar guaranis nos caixas automáticos com cartões internacionais de crédito ou débito das principais bandeiras (há a cobrança de uma taxa por operação e a incidência do famigerado IOF, nesse caso).

Rohayhú che retá

Fazendo hora nos corredores do Aeroporto Internacional Silvio Pettirossi, à espera do meu voo de retorno ao Brasil, me deparei com uma camiseta estampada com o mapa paraguaio e uma frase em guarani: Paraguay rohayhú che retá.

Notando minha curiosidade, a simpática senhora que cuidava da lojinha saiu de trás do balcão e se aproximou. Antes que eu tivesse tempo de perguntar, ela abriu um sorriso inocente e recitou: “Paraguay, amo a mi pais”.

Embarquei no avião vestindo aquela camiseta.

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