Por Lúcio Mattos
Bem acomodado na parte de trás da caminhonete quatro por quatro que se distanciava de Lages (SC) pela BR-116, Eraldo se manteve tranquilo durante todo o caminho. Ele parecia apreciar o cenário levemente montanhoso, que alterna pequenas lavouras de soja e milho em meio a vastas áreas de pasto, salpicadas de esparsas araucárias que sobreviveram ao ciclo madeireiro que fez a riqueza da cidade entre os anos 40 e 60 (boa parte da madeira usada para erguer Brasília veio desse mar de morros que se estende do sudeste de Santa Catarina até a fronteira gaúcha).
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Ao volante, Gabriel me falava das maravilhas do nosso destino final: a Coxilha Rica, uma região extensa e pouco habitada, incrustrada entre o estado catarinense e o Rio Grande do Sul, administrativamente repartida entre os municípios de Lages e Capão Alto. Apesar da importância que esse pedaço de terra tem para a formação – e manutenção – do território nacional, a Coxilha (como é carinhosamente chamada pelos lageanos) é desconhecida pela maioria dos brasileiros.
Em espanhol, a palavra coxilha identifica um terreno ondulado e limpo, um campo com algum relevo. Hoje a Coxilha Rica se encontra repartida em grandes fazendas, algumas centenárias ou até bicentenárias, mas houve um tempo em que esse mar de morros era um imenso vazio demográfico, onde curucacas, graxains, leões baios, Joões Grandes e mulitas só eram incomodadas pela passagem esporádica de bandos de homens a cavalo que tropeavam gado e principalmente mulas em direção à Feira de Sorocaba, em São Paulo. Estamos falando de meados do século XVIII, quando a febre da descoberta do ouro em Minas Gerais provocou uma corrida tão desenfreada para o interior do país que D. João V se viu obrigado a baixar uma lei que controlasse o fluxo de gente que deixava Portugal. Em menos de cem anos, a população da colônia do além-mar passaria de 300 mil para 3 milhões de viventes.
Essa gente toda precisava comer, além do que era preciso transportar o ouro extraído das minas no interior para a costa antes de embarcar o precioso metal para a metrópole. Os primeiros sinais de ouro no sertão das Gerais datam de 1693. Durante os primeiros anos, o transporte até o litoral do Rio de Janeiro era feito por escravos (negros ou índios, capturados pelos bandeirantes paulistas nas missões jesuíticas do Sul). O problema era que além de dispendioso, o deslocamento de mantimentos em duas pernas era lento – os colonizadores não tardaram a perceber que empregar animais de quatro patas seria bem mais eficiente, substituindo o lombo humano pelo das mulas.
Mas onde encontrar tantos animais para aquela tarefa que parecia impossível? Os locais mais próximos onde se criavam mulas estavam a milhares de quilômetros de distância, nas regiões em que hoje se encontram o Uruguai e as províncias argentinas de Corrientes e Entre Rios. Pois então, o acesso por terra a essas lonjuras passava pela Coxilha Rica – mais exatamente pelo Passo de Santa Vitória.
Chega de história, por enquanto. Afinal, não foi por isso que Eraldo, Gabriel e eu tínhamos vindo bater na Fazenda São Pedro, uns 50 quilômetros ao sul de Lages. Nosso propósito era outro, ligado a acontecimentos bem mais recentes (embora também ligados a um vizinho platino e capazes de alterar bastante a rotina dos habitantes da Serra Catarinense). Estávamos ali para caçar javalis, algo em que Eraldo podia ser considerado verdadeiro perito.
Antes de continuar, é bom esclarecer que esse tipo de atividade não tem nada de ilegal. Gabriel trazia sua Licença de Caça, um documento expedido pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) ou pela Polícia Ambiental, que precisa ser renovado a cada três meses. Para ter direito à autorização é preciso apresentar um laudo psicológico, o certificado de registro de arma de fogo e atestar a própria frequência em um clube de tiro. Além disso, claro, é necessário portar uma autorização por escrito do proprietário das terras em que se irá caçar.
Isso, porém, costuma ser o menor dos problemas, como Gabriel me explicou durante o trajeto. Deixamos a BR-116 para tomar a Estrada da Vigia, ainda asfaltada, até cair na BR-2, uma estrada de terra que um dia já foi a principal ligação por terra entre as regiões Sul e Sudeste do país. Só quando a caminhonete parou diante da porteira de ferro que isolava a sede da fazendo do resto da propriedade percebi alguma ansiedade em Eraldo, cujos ruídos entregavam a impaciência em descer logo do veículo e se entregar à lida.
O javali não é uma espécie nativa e chegou à região de duas formas: introduzido pelo homem (para ser criado em cativeiro) e pelas próprias patas, fucinhando desde o Uruguai. Um processo alimentou o outro, na verdade, gerando uma multiplicação desenfreada dos animais que resultou em verdadeira praga – os javalis comem o que encontram pela frente, dos ovos de aves e outros animais silvestres às lavouras de milho e soja, causando tanto prejuízos ambientais quanto financeiros aos fazendeiros locais.
O descontrole se acentuou no início dos anos 2000, quando a vacinação obrigatória contra febre aftosa foi encerrada e Santa Catarina foi reconhecida pelo Ministério da Agricultura como zona livre da peste suína clássica. Como consequência disso, a criação de javalis foi proibida no estado e os produtores ganharam um curto prazo para negociar os planteis que possuíam. Sem conseguir vender todo o estoque, muitos simplesmente abriram as porteiras para os animais saírem.
Gabriel explica que uma prática comum na região também ajudou a agravar o problema. No mês de maio, quando as plantações de soja terminam de ser colhidas e os pinhões começam a cair de maduros, os pequenos produtores costumam soltar os porcos domésticos nas lavouras, para se alimentar dos restos das plantas e da nutritiva e abundante semente da araucária. No final do ciclo do pinhão, quando já se aproxima o fim do inverno, os sitiantes saem à caça dos animais engordados de graça, os chamados “porcos alçados”, que praticamente voltam a ser selvagens. Pois bem, não demorou para que os javalis recém-libertados cruzassem com esses porcos domésticos, dando origem à espécie híbrida que em diferentes graus de pureza tomaram conta das coxilhas serranas em largos bandos: o “javaporco”.
Mais um detalhe veio a potencializar a ameaça do javali selvagem: a capacidade reprodutiva do porco doméstico (estendida também ao “javaporco”) é sensivelmente superior à do javali. Enquanto uma fêmea de javali dá até duas crias por ano, parindo cinco filhotes por vez, a porca proporciona até três ninhadas anuais – com até 15 leitões por ciclo.
O bando de oito
Quem nos recebe na Fazenda São Pedro é Milo, um rapaz de sorriso aberto na casa dos vinte e poucos anos. Enquanto Gabriel separa a munição da espingarda calibre 12 e testa o aparelho de GPS, Eraldo faz um breve reconhecimento do terreno e estabelece entendimento em bons termos com seus quatro companheiros de caçada: Fininho, Ária, Aparecida e Essa Semana, um amarelado vira-lata (ou “guapeca”, como se diz no Sul) de pequeno porte recém-adotado pela propriedade.
São três e meia da tarde e faz bastante calor, seguramente acima dos 30 graus. Enquanto Gabriel instala a coleira que nos dará a localização e distância de Eraldo durante toda a caçada, ainda me pergunto se aquele cachorro que facilmente poderia ser confundido com um “jaguara” (termo que o sulista usa para caracterizar um cão sem raça definida e de pouca serventia) era mesmo tudo aquilo.
De porte médio e pelagem predominantemente preta, a sombra esbranquiçada que tomava conta do focinho entregava a idade de Eraldo. Enquanto guiava, Gabriel me dissera que já recebera propostas de até R$ 9 mil pelo cão, mas que não o vendia por dinheiro nenhum. “Esse bicho é virado no diabo, hôme! Ele encontra rastro de porco até debaixo d’água.”
Lichiguanas, taipas e o Caminho das Tropas
Logo que cruzamos a porteira e largamos passo pelo pasto, os cachorros se espalham e desaparecem de vista, entregues à atividade febril de farejar o campo. Em dez minutos de caminhada alcançamos os trilhos da Estrada de Ferro São Paulo-Porto Alegre. Seguimos a via férrea por uns 200 metros, até o Túnel 23, uma escavação de 500 metros de extensão que corta uma grande coxilha. A expedição sofreu o primeiro revés no topo do morro que escalamos para contornar o túnel, não muito depois de Eraldo espantar um perdigão escondido debaixo de uma moita. O inesperado ataque de lichiguanas foi desencadeado pelo esbarrão de Milo no arbusto que abrigava a colmeia. Uma corrida desenfreada pasto abaixo foi suficiente para escapar das vespas – os cachorros, sabiamente, já se encontravam dezenas de metros à nossa frente.
A Fazenda São Pedro tem 9 “milhões de campo”, o que trazido a medidas de área mais conhecidas equivale a 900 hectares. Pequenas faixas da propriedade são ocupadas por lavouras de soja e milho, mas a maior parte é dedicada à criação de gado de corte. Milo me conta que uma das grandes dificuldades na Coxilha Rica está no baixo aproveitamento que o relevo e o terreno rochoso permitem. “Geralmente, as fazendas aqui só conseguem aproveitar de 25% a 30% do terreno, incluindo as áreas de pasto. Com muita sorte se alcança os 50%.”
Essa me pareceu uma grande vantagem para o visitante – tirando um ou outro reflorestamento de pinus no horizonte, o cenário é formado por coxilhas e mais coxilhas a perder de vista, entremeadas pelo verde escuro dos bosques de araucária e outras espécies nativas. A separação das “invernadas” (áreas em que o gado é apartado para dar o devido descanso ao pasto) ainda é feita pelas antigas taipas, muros de pedras encaixadas e sem recortes ou entalhes, com junta seca, erguidos sem qualquer tipo de argamassa.
Além de dividir “invernadas”, as taipas delimitavam o antigo Caminho das Tropas, o inacreditável cercamento que se estendia por centenas de quilômetros do Sul do país. Construído ao longo do século XVIII, esse caminho cercado facilitava o transporte de gado, cavalos e mulas até Sorocaba, do Passo de Santa Vitória (na fronteira catarinense e gaúcha) ao Passo do Rio Negro, que divide o Paraná e Santa Catarina no município de Mafra. Deste caminho, cerca de 80 quilômetros ficavam na Coxilha Rica – e ainda restam partes preservadas.
Estabelecido em 1733, o Passo de Santa Vitória foi o grande facilitador do transporte de mulas que serviam a região mineradora. Até sua descoberta, os tropeiros penavam em encontrar uma passagem segura para os animais cruzarem o pedregoso rio Pelotas. Até hoje a área é perfeita para a travessia, com lajes de pedra dos dois lados que formam uma suave escadaria desde as margens. Além disso, o represamento da água pela confluência com o rio dos Touros mantém uma espécie de poço natural, que permitia a passagem dos animais a nado, sem correr o risco de ferir as patas nas pedras do fundo do rio. Do lado catarinense havia uma grande mangueira, a área cercada onde se contava os animais e se cobravam os impostos. De quebra, uma guarda avançada da coroa portuguesa servia de patrulha contra os castelhanos que eventualmente ameaçassem a atividade (embora o território fosse legalmente espanhol, pelo Tratado de Tordesilhas).
Foi a descoberta do Passo de Santa Vitória e os pastos abundantes da Coxilha Rica que possibilitaram o transporte das mulas até Sorocaba – e dali para a região mineradora.
Ainda que passageiro, esse fluxo desenvolveu uma cultura tropeira única, que gradualmente foi povoando e ocupando a Região Sul. Os tropeiros desempenhavam a função de governo na região, como representantes autorizados da coroa, e mantinham os distantes vilarejos em comunicação permanente, levando e trazendo notícias pelo arquipélago formado pelos esparsos ajuntamentos humanos no Grande Sul.
Em última instância, o Caminho das Tropas foi a correia que manteve Santa Catarina, Rio Grande do Sul e o Paraná atados ao resto do território brasileiro. Sem ele, provavelmente os três estados teriam se estilhaçado e, pelo menos parcialmente, sido absorvidos pelas nações vizinhas.
A mulita e o renascimento de Essa Semana
No alto de uma coxilha escutamos o latido rouco de Eraldo – já se iam mais de duas horas de caminhada e até ali, nada de javali. “Isso não é porco,” identifica Gabriel. “Deve ser um lagarto véio.”
Ao nos aproximarmos encontramos o cachorro cavocando desesperadamente a toca rasa, bem ao pé de uma araucária, com a ajuda prestativa de Fininho. Ao comando de Gabriel, Eraldo se afasta, obediente. Enfiando o braço no buraco, ele ergue pelo rabo um pequeno tatu todo encolhido, com as patinhas a cobrir os olhos. Milo convoca os outros cachorros para que não ataquem o bicho e a “mulita” (como o tatuzinho é conhecido no Sul) é devolvida à toca.
Voltamos a empenhar passo firme pelas coxilhas por mais uma hora, subindo e descendo morros, cruzando bosques e aliviando a sede na água fresca dos arroios encontrados pelo caminho. Três horas de caminhada haviam sido cumpridas quando nos aproximamos de um banhado no meio da lavoura de soja, rodeado pelo rebanho malhado, bonito cruzamento de gado Charolês com Hereford.
Foi tudo muito rápido. Eraldo disparou decidido pela plantação, latindo alto dessa vez, seguido de perto por Gabriel, que orientou Milo a esperar do lado oposto do pequeno bosque que brotava da água. Fiquei de fora, só observando. A um rápido relincho se seguiu o tiro, provocando o estampido do gado que fugiu assustado coxilha acima. Vi um bicho peludo escapar esbaforido do banhado, prontamente perseguido por Milo. Vendo que não alcançaria o javali morro arriba, Milo parou, fez mira e disparou – mas errou, e o bicho desapareceu atrás do relevo. Logo depois veio mais um estouro de dentro do banhado, dessa vez sem nenhum guincho audível.
Obedecendo ao chamado de Gabriel, me aproximei a tempo de vê-lo sair do banhado, arrastando a fêmea abatida com um tiro certeiro sobre o olho. A outra porca não valia a pena, explicou, mas aquela daria boa carne para o Ano Novo. Não é permitido transportar ou vender a carne dos javalis caçados, mas o consumo dentro da própria fazenda não tem limitação.
A má notícia veio a seguir: Fininho e Essa Semana tinham sido atacados por uma das fêmeas. O primeiro mancava e vertia um pouco de sangue pelo quarto traseiro – nada preocupante, segundo Gabriel: “Só pegou músculo”. O caso de Essa Semana, porém, parecia mais grave – e o cãozinho estava desaparecido.
No retorno à sede, em busca da caminhonete para transportar o javali, nosso bando se viu reduzido a sete integrantes. Enquanto Gabriel e Milo debatiam qual seria a melhor parte do bicho para assar nos próximos dias (a paleta, o pernil ou a costela), eu insistia em olhar para trás, inconformado com a perda de Essa Semana.
Triunfantes, adentramos a clareira que cerca a sede da fazenda pela lateral, cortando caminho pelo pasto das ovelhas, seguidos por Eraldo, Ária, Aparecida e Fininho, que manquitolava um pouco. Eu já refrescava a sede com o galão de água trazido por Milo quando o guapeca surgiu saltitante e ileso, vindo da mangueira vizinha à casa. Pulando nas minhas pernas para pedir agrado, Essa Semana estava eufórico, como qualquer um que escapa da morte por um triz.
Depois de resgatar a presa abatida na lavoura de soja e transportá-la até o galpão onde seria carneada, nos despedimos de Milo para retornar a Lages. Terminava de escurecer e Eraldo ia tranquilo, satisfeito por mais uma jornada de dever cumprido, bem acomodado na jaula instalada na caçamba da caminhonete. Finalmente convencido da capacidade do bicho, me peguei curioso para saber mais sobre o mais improvável caçador de javalis que eu podia imaginar. Por que ele se chamava Eraldo, afinal?
“Ah, por nada… É que eu comprei ele já adulto, do Eraldo, ali do Posto Santini. Eu já tava chegando em casa quando lembrei que ele não tinha me dado o nome do cachorro. Como é que eu ia caçar com ele se eu não sabia o nome pra atiçar? Bão, chamei ele de Eraldo umas três vezes e ele atendeu. Aí ficou Eraldo mesmo…”
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Em tempo: a Fazenda São Pedro não recebe visitas, mas é possível se hospedar na Coxilha Rica, na Fazenda Lua Cheia (saiba mais pela página deles no Facebook: /fazendaluacheiahospedariarural).
Um belo texto!!