O restaurante do Lucas e Ana entrou na lista de desejos dos “foodies” por conta de um peixe assado. Brincadeira à parte, não existe esse restaurante, mas podia existir. Vou rebatizar esse jantar até o final desse texto e não é pelo peixe que veio surfando lindamente à mesa, peixe tão maltratado em endereços comerciais e não comerciais, mas cozido à perfeição para qualquer pescador sorrir, mas, sim, pelo conjunto da obra, a escolta de pães de milho, de nozes, de figo, a manteiga caseira com ervas, o foie gras, o mel cremoso que deve ser produzido por abelhas amestradas na varanda do Brooklyn,o gravilax, esse seguindo uma aula de Rita Lobo (GNT).
https://youtu.be/ZkEn7R6-_KI
Antes de manter o papo gula, preciso esclarecer que por trás dessa reunião em Ana e Lucas, há um quê familiar que nos une: os vinhos, os caminhos da boa venturança do velho mundo. Ninguém tem uma adega sem conteúdo, sem rótulos com história, a adega é uma contadora de histórias, como as bibliotecas. Para marcar na história de nossas vidas, a “chef“ advogada mostrou por que figura como CHEF TRÊS ESTRELAS.
Quando saí de casa, sem conhecer o restaurante, sem nem menos saber quem eram, apenas escutando que era um privilégio, nunca pensei que fosse à casa de amigos que abrem a vida, compartilham seus gostos, suas emoções. Nem imaginava comer e beber melhor que muitos restaurantes Brasil adentro e mundo afora. Não se pensa que se vão trocar energias, novidades, informalidades à parte… e aí sim fomos surpreendidos novamente, como diria Zagallo.
Posso começar pisando em uvas pela ponta do texto que quiser, nesse caso, vou pela minha parte preferida, uma excelente seleção de queijos do `Mestre Queijeiro`, na Simão Alvares, em Pinheiros, produção nacionalíssima. Deixei um pouquinho do Tokaji ainda na taça para fazer glória com os 3 mosqueteiros de queijos ( Mimo da Serra, Extra curado de ovelha e Tulha, respectivamente de Natividade da Serra/SP, Chapecó/SC e Fazenda de Atalaia, Amparo/SP). Da consistência quebradiça e mais firme ao menos, fico com TODOS. PS: Faça uma expedição no google sobre o Tulha e descubra por que ele é inesquecível.
Da tábua para o prato, logo seguido por uma sobremesa da chef da casa: torta de frangipane de pistache e figo. Doce, açúcar, quantas vezes a gente come sobremesa que o açúcar até deixa a garganta irritada? Não aqui. O doce engano, pois quanta leveza, quanto equilíbrio , meu Diógenes!
Aí segue-se uma bela aglomeração de chás.“Quem é amigo de chás é amigo do Rei“, sempre digo isso! Aqui eles vêm com requintes de detalhes: xícaras personalizadas. Bebi duas infusões, Mariage Casablanca e o tradicional Mariage Marco Polo. O chá suaviza a sensação do fim, de que a festa de Babette acabou, ponto e cama. Da sobremesa aos chás, para os sonhos virem!
Uma das maiores alegrias da gente que só sabe fotografar na vida e mais nada é regular o apetite pela profundidade do objeto fotografado. É uma soma, uma multiplicação, não sei dizer o que é! Ah! E devo dizer que que me causa uma profunda alegria quando vejo paredes e paredes revestidas das viagens emolduradas, cliques do Lucas, que já inclusive contribuiu com seu acervo por aqui pelo Piemonte. Esse é outro que pode largar a advocacia caso queira, rá!
Viagem ao tempo. Paris, século XIX. Aberto em 1802, em uma esquina da rua de Marivaux com o boulevard des Italiens, no 13° arrondissement, ficava o Café Anglais, cujos pratos e ambiente deixaram o endereço e foram parar nas páginas de Balzac, Proust, Zola, Maupassant, Flaubert, Umberto Eco, Henry James e chegaram ao cinema em 1987, com a “Festa de Babette”.
Na história do filme, que levou o Oscar de melhor longa estrangeiro daquele ano, um dia, uma pequena cidade dos países nórdicos recebe uma nova habitante: Babette, ex-chef do mais famoso restaurante da França, o Café Anglais, que teve de deixar tudo para salvar sua vida e se refugiar bem longe de onde brilhava. As coisas vão indo até que chega a notícia de que Babette recebeu um prêmio de 10 mil francos da loteria francesa.
Com o dinheiro, Babette pode deixar a vila, ir para outro país, viver em outras condições, mas ela decide fazer uma festa de agradecimento às duas irmãs que a abrigaram no momento mais difícil de sua. Compra tudo do bom e do melhor, para fazer um jantar francês de luxo. As irmãs e os habitantes da vila ficam receosos, acreditam que a mesa não é lugar de excessos, que a festa seria um pecado e coisa do diabo. Quando assistem a Babette preparando os pratos, Martine e Philippa ficam indignadas quando veem garrafas de vinho, algo proibido na comunidade. “Isso é vinho?”, dizem. Babette olha para elas e retruca. “Não, isso não é vinho. É um Clos Vougeot 1845”, responde ironicamente.
Quando os pratos e as bebidas chegam, a realidade muda. Ao experimentarem a sopa de tartaruga, a perdiz estufada com creme de trufas negras, salada, tábua de queijos e as sobremesas, as percepções se transformam. No fim, as irmãs agradecem Babette e perguntam para onde ela vai agora que está rica. Ela sorri e responde que gastou todo o dinheiro com o jantar. As irmãs se olham e ficam preocupadas. Babette olha para o céu e sorri. “Eu precisava brilhar, eu precisava mostrar a minha arte.”
Nossa festa de Babette, no dia em que Paul Bocuse faleceu, se iniciou e se encerrou com emoção. Guimarães Rosa dizia que as pessoas não morrem ficam encantadas. Essa é a magia da vida. Alguns momentos também são encantados, privilégio é de quem pode participar deles. Batismo: um restaurante cuja refeição termina nos sonhos, mas é de carne e osso.