É um pecado levar um valentini para o almoço? Pergunto, sugerindo que posso levar a mesa outro produtor referência de Abruzzo. “Absolutamente, não “, diz ela. Respeito acima de tudo.
No começo da década de 1970, Emidio Pepe resolveu viajar aos Estados Unidos para mostrar a revolução iniciada em 1964 em sua vinícola em Abruzzo, região agrícola a leste de Roma, entre o Adriático e os Apeninos e que não despertava nem o interesse da crítica nem dos enófilos. Na sua mala, levou algumas garrafas de seu tinto, feito com a uva local Montelpulciano, considerada por muitos como ruim até para se usar nos molhos.
Uma garrafa foi parar na mesa de Lidia Bastianich, apresentadora premiada de televisão americana e autora de livros de culinária. Lidia gostou tanto que comprou o restante do que Emidio tinha trazido na mala para servir na abertura de seu restaurante, o Felidia, em Manhattan. Na inauguração do endereço, sentou-se à mesa e bebeu o Montepulciano, que ganhou centenas de pedidos quando os jornais americanos estamparam as fotografias do evento. Nunca mais a família parou de viajar. A vinícola se tornou tão reputada no exterior como a de Angelo Gaja ou de Biondi Santi. O Montelpuciano da safra 1964 foi vendido em leilão a mais de US$ 4 mil por uma loja em Nova York há poucos anos.
Chiara Pepe, que assumiu o comando da vinícola na safra 2020, conta com um sorriso essa história no almoço de uma terça-feira do fim de março em São Paulo, no Baru Marisqueria, quando questionada se gosta de viajar pelo mundo. “Faz parte da nossa história, assim como a biodinâmica”, diz ela, nascida em 1989. As 80 mil garrafas (45 mil do tinto, 5 mil de um disputado rosé – o Cerasuolo – e o restante de dois brancos – o Trebbiano e o Pecorino) são vendidas para 40 países, entre eles o Brasil, onde os vinhos são importados pela Uva Vinhos, que recebe em breve uma nova remessa. Foi sua terceira viagem ao país, a primeira desde que começou a vinificar. Veio para um jantar no restaurante italiano Fame, zona oeste de São Paulo, para apresentar seus vinhos. “Os brasileiros têm um especial apelo pelo branco feito com a uva Pecorino, que enseja vinhos aromáticos e exóticos.”
Quando Chiara vinificou seus primeiros vinhos em 2020, o primeiro a bebê-los foi Emidio, que hoje assiste à distância aos passos da neta. “Ele ficou orgulhoso.” Não mudou a vinificação. Desde sua infância, Chiara viu seu avô trabalhar nas videiras e na cantina. Foi para a França estudar enologia e fez um estágio de um ano na Borgonha, no domaine Chandon de Briailles. Quando assumiu, não mudou nada. Desde 1964, não se usam defensivos para tratar os vinhedos. Primeiro, porque não existiam naquela época, segundo porque poderiam trazer algum impacto para os vinhos. Não se usa madeira. Os vinhos são envelhecidos em grandes toneis de cimento com leveduras naturais e vendidos quando a família julga estarem prontos para serem bebidos. As uvas são colhidas à mão e pisadas em um grande tonel de madeira. Eles começaram fazendo vinhos naturais décadas antes de o termo, em voga hoje, ter nascido.
“Quando assumi, foi uma questão de manter a história do meu avô. Não fazemos nem faremos concessões para o mercado”, fala, abrindo seu branco feito de Trebbiano d´Abruzzo, safra 2015. As safras são vendidas quando a família acredita que os vinhos estejam prontos para serem bebidos. Emidio foi um dos primeiros a construir um espaço para envelhecer seus vinhos por longos períodos em garrafas antes do lançamento. A vinícola conta com uma adega com capacidade para envelhecer 350.000 garrafas. Há 50 anos, Montelpuciano era um vinho para ser bebido jovem, o governo encorajava cada vinícola a produzir centenas de milhares de garrafas para serem vendidas. “Meu avô ficou furioso e por isso decidiu apostar em outra direção e ir para os Estados Unidos ver se entendiam sua filosofia, que sempre foi natural”, diz ela servindo o Montelpuciano 1993, que com três décadas esbanja juventude.
O aquecimento global tem interferido nas datas de colheita (e nas férias), podendo a vindima ser antecipada ou prorrogada em duas a três semanas, o que pode fazer com que ocorra entre metade de agosto e início de setembro. Quando chega o momento a família de sete pessoas e outros 10 trabalhadores locais trabalham colhendo as uvas.
Além da preocupação com o clima, os preços dos vinhos nas regiões mais famosas do mundo têm feito surgirem dezenas de ofertas de compradores de terras do mundo todo. No Piemonte e na Toscana, dois dos mais famosos terroirs italianos, vinícolas foram compradas por americanos, ingleses, franceses, russos e até brasileiros (André Esteves e Galvão Bueno). Em Abruzzo, os preços da terra explodiram. Há 10 anos, um hectare valia 10 mil euros. Hoje pode custar 50 mil euros, um valor considerável, mas ainda muito abaixo dos 1 milhão de euros que podem ser alcançados em Barolo ou Barbaresco, terra onde nascem os melhores nebbiolos do planeta. “Há uma preocupação de que algumas vinícolas não sejam mais de famílias e percam essa essência artesanal.”
Mais informações https://www.emidiopepe.com/