Quando as Krugs atravessam os campos do senhor

Aniversário Parte I

 

A ideia original era realçar as sutilezas de Chambolle-Musigny e pôr em perspectiva uma degustação ocorrida dez anos antes, mas intenções se esvaem nos céus quando o início se faz com as quatro letras do universo enófilo: Krug.

 

Se na bíblia do enófilo deveria estar inscrito que tudo se inicia com Champagne (duas exceções à regra, ambas italianas), no Gênesis do afortunado deveria estar que iniciar com Krug é certeza de ver o céu, mesmo sob mau comportamento.

O primeiro duelo trouxe uma Krug antiga (156? Ou 164?) – cujo rótulo não tem a marcação da edição e comprada fora não trazia nenhuma outra indicação – e uma jovem – a edição 171, assemblage de 131 vinhos de 12 anos diferentes, sendo o mais novo de 2015, enquanto o mais antigo data de 2000.

Na juventude, a Krug esbanja acidez, cítricos e o toque exótico de gengibre, enquanto a maturidade concede a grandeza que o tempo permite apenas alguns chegarem. Na linguagem cinéfila: Margaret Qualley, protagonista de ‘A Substância’, que interpreta uma versão mais jovem personagem de Demi Moore; já a com idade me remeteria à Grace Kelly de “Janela Indiscreta”, na cena em que ela leva uma quentinha e um Montrachet.

Há muitas incertezas na vida, mas uma certeza: uma Krug jovem sempre deixará incomodadas as próximas garrafas, uma bem conservada e com alguns anos de adega se torna um dos vinhos grandiosos. Ambas podem sobreviver décadas e podem acompanhar de salmão defumado a foie gras, de peixes a aves, do silêncio à contemplação.

O que pode ser melhor? Uma Krug de uma safra excelente, como a 2008. Aí é melhor deixar com o especialista que Olivier Krug chamou de “o nerd do mundo do vinho” – Mr. John Gilman. “The 2008 Vintage bottling from Krug just continues to get better each time I am fortunate enough to taste it. I last tasted this wine a year ago and it has not seemingly aged a bit since that time, as it remains a glorious vintage here that will demand plenty of patience before it properly blossoms. The bouquet remains beautifully precise and bottomless, offering up scents of apple, tart pear, lemon, a beautiful base of chalky minerality, patissière, dried flowers, blossoming smokiness, just a touch of caraway seed in the upper register. On the palate the wine is deep, full-bodied and structured, with a snappy girdle of acidity, a rock solid core, great mineral drive and grip, elegant mousse and a very, long, bright and seamlessly balanced finish of enormous potential complexity. All this great, great vintage of Krug needs is more time alone in the cellar.”

Parêntesis: (A envelhecida chamou tanto a atenção de um amigo, que ele que mal pega o celular sobre a mesa passou minutos tentando decifrar de que edição era a Krug. Depois de ter bebido 4 rótulos da casa em duas semanas, eu, obrigado a dar notas, daria de 95 a 97 às quatro, com uma briga dura entre a envelhecida e a Rosé edição 24 no segundo lugar.)

No capítulo dos brancos, tivemos três estilos de Chardonnay. O novo mundista Montelena, uma propriedade histórica da Califórnia, participante do Julgamento de Paris, em 1976, ganhador daquela degustação. Um vinho interessante a US$ 40, mas se entrevê que hoje alguns outros californianos jogam numa outra liga e poderão dar trabalho, às cegas, aos bourguignons (e não é só rótulo de Rajat Parr e seu ótimo Sandhi).

Sylvain Pataille e seu Marsannay branco da safra 2020 ainda mostra contenção, um vinho a se reencontrar porque aqui está um dos poucos produtores da Borgonha que vinificam bem em branco, tinto e rosé e em três uvas (seus aligotés são muito bons). Há estrutura aqui.

Às cegas chega o belo vinho de Tissot, Les Graviers, da safra 2020, um Jura que em tempos de provável guerra comercial entre Estados Unidos e seus parceiros poderá se tornar um imbatível qualidade preço, ainda mais diante do câmbio em que os próximos contêineres bourguignons serão fechados…

Passados champagnes e brancos, chega a hora do tema do encontro: pelos campos do senhor. Antes de passar aos dois protagonistas, a abertura com Anne Gros e seu chambolle combe orveau 2017, um elegante e delicado vinho, com toque de violeta e ainda fruta negra. O Brasil recebeu tantos novos produtores da Borgonha e Anne ainda não tem seus vinhos representados de forma contínua e adequada no Brasil, uma pena. Seu Richebourg 2000 é um dos grandes vinhos bebidos pelo site.

Feita a introdução à cidadela cujos vinhos são descritos como os mais femininos da Borgonha, chega a hora dos protagonistas: chambolles 2009, um de Frédéric Mugnier, outro de Christophe Roumier, quase vizinhos na cidade de pouco mais de 250 habitantes.

Há dez anos, no chef Vivi, levei às cegas as duas garrafas para o Nelson experimentar. Ele nunca tinha tomado Mugnier, só ouvia minhas juras de amor ao produtor e tinha clara preferência por Roumier na village. Terminada a degustação, retirado o papel alumínio, Nelson se viu confuso sobre o que ele achava e disse: “agora, entendi sua paixão.” Escreveu a degustação no site, “Chambolle pelo maestro Mugnier”, irritou alguns, ao escrever: “Já o meu favorito a priori, antes da degustação começar, perdeu-se um pouco em sua tipicidade. A despeito de ser um belo vinho, mostrou-se como uma mulher muito austera, fria, tentando sustentar uma seriedade que não possui. Faltou feminilidade. De fato, de início, um pouco fechado e misterioso, tanto em boca, como nos aromas. Seus taninos, bem presentes, pareciam por demais extraídos.”

Dez anos e duas outras garrafas depois, Roumier e Mugnier se confrontaram com vinhos de 15 anos de envelhecimento. Com 15 anos, temos duas interpretações. Mugnier, com um vinho ainda jovem, em que os terciários mal aparecem, faz um estilo mais feminino, mais floral, com a cor muito mais tênue e uma discreta mineralidade; já Roumier ao longo das horas vai numa miríade de fruta em compota, um leve floral, um toque de sous bois e um leve alcaçuz, com algo indecifrável, cor muito mais negra na taça. Para este aqui, a maior diferença dos dois está no uso de Fuées na assemblage por Roumier.

Um dos melhores crus de Chambolle, ao lado de Cras (Amoureuses joga em outra liga), Fuées tem uma mineralidade distinta, mas pela sua parcela estar no pedaço mais íngreme do terroir Christophe julga que ele não estaria à altura de ser vinificado em separado. A visitar o domaine, minha pergunta seria: qual Fuées Roumier tem reverência? Acredito que seja o de Mugnier, que a partir de 2005 começou a fazer um Fuées impressionante, assim como o Bonnes Mares seu evoluiu absurdamente a partir da safra 2011.

Mugnier ou Roumier? Uma parte da mesa foi prum lado, outra, pro outro. Eu? Há dez anos, eu teria um vencedor, hoje eu deixei a conjunção alternativa no dicionário e me perco entre as nuances dos dois. Roumier e Mugnier ou Mugnier e Roumier.

 

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