Degustação às cegas: humildade e humilhação

Por Gerson Lopes

O saudoso e expert em vinhos Saul Galvão dizia que uma prova às cegas é uma combinação de humildade e de humilhação, pois, na maioria das vezes, provoca a grandes entendedores da bebida de Baco aquela típica “cara de tacho”, mortificante, após a abertura dos rótulos. “Não poder ser! “Tem algo errado” e por aí vai.

 

https://www.youtube.com/watch?v=ltnls7fvDLM

( Se o vídeo não abrir no play, acesse pelo canal do YouTube)

Compartilho com vocês uma prova de grandes ícones mundiais da safra de 1990 que fizemos às cegas. Iniciamos a noite com um confronto aberto de dois grandes brancos: Domaine Ramonet Grand Cru Batard-Montrachet 2006 (RP 96) versus Château Pape Clément 2006 (RP 98). Os brancos de Ramonet são excepcionais, firmes, concentrados e de grande potencial de guarda. Este fez jus ao terroir, pois mostrou-se poderoso, masculino, porém já bem domado, delicioso. Segundo Clive Coates (CC), um dos mais entendidos quando o assunto é Borgonha, “o seu Bâtard é o vinho mais consistentemente bem-sucedido, melhor até do que o Montrachet, que pode ser totalmente brilhante”. O oponente – Château Pape Clement – levou a luta até o final, dando empate neste confronto de preferência. Toque cítrico, baunilha, ao paladar mostrou-se fresco, ao mesmo tempo poderoso, algo cremoso, acidez perfeita, predizendo longa vida pela frente. Belíssimo branco bordalês.

Fomos para a grande luta da noite, agora às cegas, entre tintos de 1990 (e que tintos!), safra considerada excelente em todo o mundo, daí ser chamada de mundial. Pelearam Château Cheval-Blanc (RP 98+); Domaine JF Mugnier Grand Cru Musigny (CC 19,5/20); Jean Louis Chave Hermitage (RP 99); Gaja Barbaresco Sorì Tildìn (RP 97); Vega Sicília Único (RP 96) e Dalla Valle Maya (RP 96).

Antes de ir aos trabalhos, pensei comigo e expressei aos 11 participantes: “nós quatro, que provamos na semana anterior o Cheval Blanc 90, vamos achá-lo fácil!”. Dito e feito, todos nós escrevemos na ficha que ele seria o da taça 1. Desfeita a degustação às cegas, veio a surpresa: erramos!

Nessa primeira taça, estava o Gaja Sorì Tildìn. Pior ainda, confundi este com o Musigny, que estava na taça 2 e disse que este seria o Gaja. Já que não tinha mais diplomas para rasgar – brincadeira comum quando apostamos em provas às cegas -, ousei e disse que seria a última vez que beberia vinhos se errasse mais uma vez. Cabe frisar: a promessa valeria apenas durante aaquela noite, é claro!

Depois da humilhação, compartilhada com dois dos que tinham “mais estrada” no mundo de Baco, tentei explicar o que poderia parecer inexplicável, mas não é. Lembrei que uma pessoa famosa no mundo do vinho  disse certa vez que “os vinhos do Gaja têm a elegância e finesse de um grande Borgonha e o peso e a opulência de um magnânimo Bordeaux”.

Começo falando do Barbaresco Sorì Tildìn, o “ingrato”. Sua primeira versão foi em 1970 e seu nome é uma homenagem à avó de Angelo, a Clotilde Rey, conhecida na família como Tildìn. Trata-se de o segundo vinho de vinhedo único de Gaja. Posteriormente (1996) este vinho deixou de ser classificado como Barbaresco DOCG e passou a ser rotulado como Langhe DOC, devido à adição de Barbera, uva não permitida aos Barbarescos. Percebíamos nele toda a tipicidade de um Sorì Tildìn: redondeza, sutileza e finesse em sua textura, taninos hiper elegantes e um final de boca agradabilíssimo e interminável. E um grande potencial de guarda. Votei nele como o terceiro melhor de todos, porém ele ficou em terceiro lugar na preferência (49 pontos), bem próximo ao Hermitage de Chave (53 pontos).

O outro “ingrato”, o Cheval Blanc, que geralmente ganha nas provas às cegas que participo, como não podia deixar de ser, ficou de novo como o melhor na opinião da maioria dos participantes (56 pontos), porém empatado com o Vega Sicilia.  “Errei” até no quesito de melhor, pois escrevi na ficha que o vinho da taça 3 era o quarto melhor, achando-o se tratar do Musigny. Segundo Neal Martin, em prova de julho 2016, o Cheval Blanc de 1990 está rapidamente se tornando a sua safra favorita dos tempos modernos desta propriedade de Saint- Emilion, e é inequívoco que se trata de um vinho brilhante (deu-lhe 98/100 e alargou tempo de maturidade até 2045). Para Robert Parker, o Cheval Blanc 1990 superou seu rival mais próximo, o 1982.

O Musigny de JF Mugnier, fez questão de humilhar não só a mim, como nove dos participantes, inclusive os três mais iniciados. Teve apenas 37 pontos na preferência. Chega de tantos erros e  vamos agora falar de meus três acertos em descobrir “qual vinho é?”.

O Vega Sicília não foi difícil definir às cegas, porém não me encantou como aconteceu com a maioria dos participantes. Compartilhei com os outros dois participantes com mais “estrada” em vinhos o acerto – Vega é o da taça 4, porém no quesito preferência divergimos, pois só um deles votou como eu, colocando-o como o penúltimo neste aspecto. Porém o outro amigo pontuou-o como melhor para ele. Lembrem que para a maioria dos participantes Vega foi campeão junto com o Cheval. O bom do vinho é que, quando se fala em preferência, o peso de subjetividade, do gosto pessoal é muito grande, caso não fosse, não teria muita graça. Belo vinho, mas tinha outros melhores, a meu ver.

O cult wine do país do Tio Sam, o Maya, top da Dalla Valle, é que nos surpreendeu pois achávamos antes de começar que brilharia na prova, porém ficou em último lugar em preferência, obtendo apenas 25 pontos neste quesito. Aqui juntos com os dois amigos já referidos acertamos qual taça seria a do Maya e concordamos que o vinho da taça 6 era o que menos nos seduzia naquela noite. Um delicioso exemplar, mas junto de uma cascata de sensações de delicadeza e elegância que os demais propiciavam ele estava um pouco demais, talvez arroubos ainda de sua juventude evidenciada pela intensidade de cor e aromas frutados.

Acertamos também qual era o grande Chave, sem dúvida um “fora de série”, quase a perfeição na forma líquida. Sua evolução na taça foi algo fenomenal. Um de nós três o colocou como o melhor da noite, o outro como o terceiro e eu o considerei como o segundo.

Finalizando, diria que uma prova às cegas, além de ser um exercício de humildade e para alguns de humilhação (os que dizem saber tudo), a meu ver pode nos propiciar grande aprendizado e momentos de muitas brincadeiras quando feita entre amigos. Sempre falo que vale aqui uma das frases pérolas do mineiro Guimarães Rosa: “Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa”. E lembre que somos seres condicionados e fortemente influenciáveis, e tudo isso é muito evidente em uma prova às cegas. Ainda rolou no final, um fantástico vinho de sobremesa da maior estrela da Alsácia, Zind-Humbrecht, o Clos Jebsal VT Tokay Pinot Gris 1990 (RP 96), encerrando a noite. Beleza de Vendange Tardive em que a alta acidez contrapõe a doçura.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Close
INSTAGRAM
Latest Travel Blog
Close

Pisando em Uvas

Explore o universo do Vinho

© 2019 Pisando Em Uvas. Desenvolvido por DForte
Close