Há dois anos, muitos escritores respiraram melhor. Michiko Katukani — que por quase quatro décadas resenhou livros no “The New York Times”, se tornou a mais poderosa crítica de livros em língua inglesa, fez Gore Vidal e Norman Mailer temerem suas avaliações e colocou no estrelato gente como Ian McEwan — se aposentou. Com ela, se foi uma era. O poder de Katukani, que virou um verbo em inglês “Kakutanied” e se tornou referência em seriados como “Sex and the City”, teve poucos similares, mas talvez tenha eco em outro campo: o vinho, nas mãos de Robert Parker, que se aposentou neste mês de maio, depois de quatro décadas à frente da avaliação de vinhos, celebrando alguns produtores, decretando a queda de outros.
A paixão de Parker pelo mundo de Baco se iniciou no fim dos anos 60, quando ele viajou para a Alsácia para se encontrar com sua esposa, Patricia, que estava estudando na região famosa pelos seus rieslings. Em 1973, quando se tornou advogado, uniu o trabalho no escritório, baseado em Baltimore, com o hobby. Desse pano de fundo, surgiram o nome da publicação e sua inspiração: um defensor do vinho. Em 1978, resolveu criar a The Baltimore-Washington Wine Advocate, que ganhou um ano depois o nome Wine Advocate, que perdura até hoje.
O estrelato chegou no início dos anos 1980, quando o principal crítico era outro Robert, o Finigan, que publicava “Robert Finigan’s Private Guide to Wines”, na qual destacava os rótulos em quatro categorias: excepcional, acima da média, na média, abaixo da média. Parker não: desenvolveu um um sistema muito mais fácil, baseado em pontos em que o máximo era a nota 100, muito mais fácil de ser lida pelo público e muito mais fácil de ser vendido por quem trabalha no mercado. Criado o sistema, faltava um grande teste para colocar em prática.
Em 1983, um punhado de críticos viajou à região de Bordeaux para beber os vinhos da safra 1982 que começavam a ser degustados antes de irem ao mercado. Finigan acreditava que grandes vinhos não podiam ser acessíveis quando jovens. Quando experimentou os 1982, sentenciou que aqueles vinhos eram abordáveis demais para envelhecerem grandiosamente. Ou seja, eram acima da média. Parker, aos 35 anos, não hesitou: para ele, a safra 1982 era grandiosa do começo ao fim. Sua dica era simples: compre caixas. O mito nasceu aí, uma vez que a safra 1982 é tão lendária quanto 1945, 1959, 1961 ou 1990. Quem comprou caixas multiplicou por, pelo menos, cem o dinheiro investido.
A escala de pontos e o palato fizeram com que Parker fosse o termômetro do mercado a partir de um momento em que os Estados Unidos começaram a comandar o mercado “en primeur” de Bordeaux, quando os vinhos são vendidos antes de serem engarrafados e comercializados. A enologia tinha mudado também, apontou Nicolas Faith em artigo na inglesa Decanter sobre a safra 1982. “A evolução técnica tinha ensejado uvas mais maduras e com elas taninos mais suaves mas com a mesma capacidade de envelhecimento”, escreveu. Em 1982, a média de álcool dos vinhos era de 12,5 graus, um ponto mais baixo que a atual. Parker passou a ser substantivo: vinhos mais frutados, mais redondos que os do passado. No fundo, ele acompanhou a mudança, percebeu a evolução técnica dos vinhos e que essa transformação não iria alterar o potencial de envelhecimento dos grandes bordeaux. Ou seja, 1982 era abordável desde o nascimento porque a tecnologia tinha permitido, mas era tão grande quanto 1959 ou 1961.
A lenda em Bordeaux se confrontou com um problema na Bourgogne. Em 1993, quando avaliou em sua publicação os vinhos da safra 1990 da Bourgogne, Parker elogiou grande parte dos vinhos da Faiveley, mas, ao fim da resenha de quatro páginas e meia, apontou que “do lado negativo, rumores circulam que os vinhos exportados são menos ricos que os provados em suas caves – uma coisa que tenho notado. Ummm…”
Os Faiveleys não leram a resenha, mas o importador dos seus vinhos no Brasil, Ciro Lilla, dono então apenas da Mistral, não apenas leu, como avisou a direção da tradicional casa, fundada em 1825 e cuja sede é em Nuits Saint Georges, coração da Bourgogne. François Faiveley ligou para seus advogados e processou o crítico por infâmia. A ação foi resolvida em um acordo judicial em que Parker teria pago 1 franco para admitir o erro. Bilionário grupo com vários ramos pelo planeta, os Faiveley não queriam dinheiro, defendiam sua reputação. A partir daí o crítico foi mal visto por muitos produtores e adoradores de Bourgogne. Foi o divórcio com a terra do pinot noir e da chardonnay. Parker deixou a região para outros críticos de seu time.
Ele manteve seu prestígio, principalmente em Bordeaux, Rhône (no qual o coração latino batia mais forte que a razão em alguns casos) e na Califórnia. Suas notas 100 faziam vinhos valorizarem mais de 100%, enquanto notas abaixo de 90 eram sinônimo de prejuízo para vinícolas e importadores. Seu prestígio foi se tornando mais difuso a partir da década 2000, quando Stephen Tanzer, Allen Meadows, John Gilman, Michel Bettane passaram a ter mais público com o avanço da internet e novos consumidores pelo mundo descobriam o vinho e usavam outras avaliações, a maioria delas (Bettane é o único que usa a escala até 20 pontos) baseada na escala dos 100 pontos criada por Parker.
Em 2012, ele anunciou a venda de participação majoritária na publicação para investidores asiáticos, com Lisa Perotti-Brown assumindo a direção da publicação. Três anos depois, passou o bastão da crítica de Bordeaux para Neal Martin, hoje na Vinous, de Antonio Galloni, que resenhava os vinhos do Piemonte para Parker. Um problema no quadril o afastou nos últimos cinco anos de eventos e viagens, já deixando seus textos cada vez mais escassos e esparsos. O ponto final veio agora em maio.
Parker deixa o dia a dia do mundo dos vinhos, mas suas notas ainda influenciarão o mercado por anos e dezenas de críticos que, com a internet, ganharam voz. Deixa diversos sucessores, difícil é saber se um dia haverá um crítico tão influente entre leitores e o mercado.