Entregue aos paraguaios – parte 1

Por Lúcio Mattos

A imagem que os brasileiros têm do Paraguai e dos paraguaios é francamente negativa. O nome do país quase sempre vem à baila para desqualificar algo ou alguém, seja um mal whisky (normalmente falsificado em território nacional mesmo) ou uma equipe esportiva que larga na frente e não tem fôlego para manter o ritmo ao longo da competição (o popular “cavalo paraguaio”). Talvez seja um ato falho, uma busca desesperada de identificar no outro os mesmos (ou piores) defeitos de caráter que já estamos acostumados a ver no dia a dia do nosso gigante adormecido em berço esplêndido.

No interior de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, porém, todavia sobrevive uma expressão mais antiga, que remonta à época em que o Paraguai era um país pujante, próspero e promissor, a ponto de se dispor a enfrentar as forças militares combinadas e muito mais numerosas de Brasil, Argentina e Uruguai. Ao ver alguém ferrado em um sono profundo ou dormitando na mesa depois de um farto churrasco antes mesmo da roda de mate, catarinenses serranos e gaúchos se divertem: “ih, esse aí se entregou aos paraguaios”. Foi ao que me propus, embora não no sentido exato da expressão: uma incursão ao vizinho mais pobre do Mercosul com os olhos bem abertos, os tais olhos de ver. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

É relativamente compreensível que a imagem paraguaia entre os brasileiros seja tão pouco lisonjeira. A maioria dos que visitam o país, afinal, não vai além de Ciudad del Este, a caótica cidade colada à fronteira que se conecta a Foz do Iguaçu pela Ponte da Amizade, cruzada diariamente nos dois sentidos por quem queira, a seu bel prazer, com escasso ou nenhum controle migratório ou aduaneiro. Não diria que Ciudad del Este não vale a viagem – para mim qualquer lugar vale a viagem, a questão é saber enxergar o entorno -, mas é realmente difícil desvincular a imagem clássica que fazemos do Paraguai da desordem e sujeira que dominam a povoação fronteiriça.

Cruzei a ponte a pé, em um começo de tarde quente e ensolarado. As cores da travessia, com a água verdinha do Paraguai a perder de vista e as andorinhas que voavam rente ao rio, quase permitiram ignorar o ruído e a poluição provocada pelos carros e caminhões encalacrados na fila rodoviária à esquerda. Mas não foi preciso se afastar nem 50 metros do primeiro posto de polícia do lado paraguaio para receber as primeiras ofertas ilícitas. Em cinco minutos já tinham me oferecido cocaína, haxixe, una buena pistola, chicas e Viagra (não necessariamente nessa ordem). Perambulei por algumas horas por Ciudad del Este, e o resumo é: se estiver curioso, vá. Mas chegue preparado para negociar a balbúrdia.

O Paraguai não se resume a Ciudad del Este, no entanto – a tentativa de deixar isso claro, aliás, talvez seja minha maior motivação ao relatar essa experiência. De volta a Foz do Iguaçú, portanto, parti rumo à capital, uma viagem de sete horas em um confortável ônibus leito da paraguaia NSA (Nuestra Señora de la Asunción).

A primeira Buenos Aires

É difícil imaginar o tamanho da decepção dos espanhóis com Asunción, o ajuntamento humano às margens do rio Paraguai que em meados do século XVI os conquistadores planejavam como porta de entrada para as lendárias minas de prata peruanas. Eles ainda não sabiam, mas entre o caudaloso rio e a cordilheira havia o Chaco a barrar o caminho, uma região semiárida e inóspita que até hoje é pouco povoada, causa de uma guerra difícil de entender entre paraguaios e bolivianos em meados dos anos 1930, cujo resultado mais consistente foram os 80 mil mortos dos dois lados.

Sim, Asunción foi construída para ser uma Buenos Aires (fundada quase 40 anos mais tarde), com sua praça central dimensionada para permitir as corridas de cavalos de que os espanhóis tanto gostavam e o indefectível Cabildo, sempre a irradiar o poder del rey nas cidades de maior porte da América Latina. Ao se darem conta de que o acesso ao ouro e prata incas não seria tão simples por aquele caminho, porém, os conquistadores perderam interesse pela cidade e decidiram estabelecer sua base mais ao sul, na orilla do que ficou conhecido como rio da Prata.

É justamente esse desinteresse que torna a capital paraguaia interessante. Durante 300 anos o Paraguai se manteve virtualmente fechado ao mundo, tempo suficiente para plasmar uma cultura mestiça única, resultado do cruzamento de diversos povos indígenas com os espanhóis. Filhos, netos e bisnetos da elite local adotaram os hábitos e a cultura europeus, mas mantiveram o orgulho das suas raízes ancestrais. Nesse período o Paraguai chegou a ser conhecido como a “China da América do Sul”, pela dificuldade de acesso e até de se obter informações sobre o que se passava naquele distante entre rios. Os paraguaios se orgulham de terem sido os primeiros a declarar independência da Espanha (em maio de 1811) e até hoje se ouve o guarani pelas ruas da capital (na sua versão pura ou na mistura da língua indígena ao espanhol, o jopará).

Sopa sólida

Minha primeira experiência culinária em Asunción foi uma pequena decepção, ainda que incomensuravelmente menor do que a dos conquistadores encalhados entre o rio e o Chaco. Bem instalado na barra do climatizado Bossi, a salvo dos 36 graus à sombra da rua, nada parecia poder dar errado. Aquele era um dos restaurantes mais tradicionais da cidade, afinal, recomendado por dez em dez guias de viagem sobre o Paraguai (se é que há tantos). Mas como bem definiu Augusto Roa Bastos em sua novela mais célebre (Yo el Supremo), em que narra como Rodríguez de Francia transformou o Paraguai na nação mais desenvolvida do cone sul no início do século XIX, “para ver hay que tener paciencia”.

No Bossi, haja paciência. É um daqueles lugares em que os anos de casa parecem ter conferido aos garçons a autoridade para servir quem (e quando) quiserem. Levei uns dez minutos para romper a barreira da invisibilidade e pedir uma entrada, a sopa paraguaya. Mais alguns minutos e lá veio ela, verdadeiro tijolo de uma espécie de polenta de consistência mais seca e agradavelmente condimentada, que me sustentou pelo resto do dia. Em tempo: a decepção não foi a sopa paraguaya, mas o restaurante. Ah, e se quiser sopa líquida, a palavra é caldo (o de pescado tem boa fama na culinária paraguaia).

O microentro asunceno

É bom que se diga que Asunción não decepciona de maneira alguma. Com pouco mais de 2 milhões de viventes (um terço de todos os paraguaios), a capital tem uma atmosfera bem mais relaxada do que cidades brasileiras com população até menor, como Belo Horizonte, Porto Alegre ou Curitiba. O chamado microcentro asunceno concentra as principais atrações, um compacto retângulo de 10 por 20 quadras que pode ser negociado a pé, delimitado pelas avenidas Brasil, Ygatimi, Colón e Mariscal López.

Três ou quatro dias são suficientes para começar a entender Asunción. Não espere a grandeza de Buenos Aires, mas a arquitetura hispânica está lá, os preços são razoáveis, a entrada em todos os museus é gratuita e os asuncenos são amáveis e hospitaleiros, sempre prontos a oferecer orientação (e dispostos a tentar entender meu espanhol canhestro). A culinária particular e uma cultura criolla única são os maiores atrativos – e ao contrário do que se poderia imaginar (ou até ousar esperar), os paraguaios têm os brasileiros em bom apreço.

 

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