Restaurante secreto e a arte da memória

Quando se tem um parente com demência avançada, se nota que ele vai se esvaindo aos poucos, se perdendo em meio a uma névoa que deixa os olhos perdidos no espaço, entre dias de mais ou menos esquecimento. Talvez quem melhor tenha captado isso seja o autor do título “Still Alice”, com a Juliane Moore.

Quase tudo se perde, fica alguma coisa, no caso da minha mãe, o gosto pela comida. Cozinhar para ela ou levar alguma coisa de que ela sempre gostou tem sido uma forma de reter o que inexorável tempo destrói a cada dia. (Caso o poeta T. S Eliot tivesse vivenciado situação assim, trocaria o abril, o mais cruel dos meses, pela passagem diária do tempo.)

Diabética e hipertensa, ela sempre se disse uma pessoa simples, de hábitos comuns e pratos singelos. Uma vez por mês, segundo as ordens médicas, geralmente na primeira semana, era o dia em que preparava a rabada. No dia anterior, ela checava como estava a minha agenda, se eu estava livre, era a senha para o meu pai acordar cedo no dia seguinte, ir ao santa luzia e comprar as peças de rabo limpas pelo açougueiro.

Aí começava o corte dos temperos, a abertura da garrafa de vinho tinto, a chegada da panela de pressão, onde a carne era cozida por quase duas horas até que a carne se soltasse e o aroma invadisse o apartamento.

Não lembro a última vez que ela fez uma rabada, só recordo que meu pai tentou mudar o fornecedor: foi comprar no santa barbara, mas ela reclamou que as mãos, já trêmulas, não estavam dando conta de limpar a carne. Levei o barolo 2010 de Aldo Conterno, que escoltou a última rabada que comi com meus pais.

Dia desses, perguntei à minha mãe se ela queria comer alguma coisa em especial. “Não precisa”, foi a resposta padrão de quem nunca quis dar trabalhar. “E uma rabada?”

Os olhos brilharam. “Faz tempo, né? Última vez foi naquele restaurante que entrega em casa e que você adorava, esse amigo vai fazer na casa dele e eu vou trazer para você.”

“Não precisa”, disse ela.

Algumas semanas atrás, numa sexta-feira antes da aula, levei o prometido. Esquentei na panela e servi uma porção de arroz. Limpou os ossos. As madeleines de Proust, no meu caso, se tornaram os ossos da rabada.

E ela pediu para agradecer ao anfitrião do restaurante secreto.

 

Segunda parte pra falar dos vinhos e jantar segue amanhã.

 

 

1 comment

  1. O tempo é breve, os minutos mentem, não escutemos o giro dos ponteiros, não tenhamos pressa; a dúvida se esvai nos ossos, essa presença-de-ser. Celebro, abraço, te abraço.

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