Gianfranco Soldera faz um dos mais famosos vinhos da Itália. Os críticos gostam de dizer que, mais do que um brunello, ele faz um brunello de assinatura Soldera. Há uma regra aos que o visitam: não se cospe o que se bebe ali. Porque Soldera diz que só se cospe vinho ruim. Quem quiser cuspir o faça em outro lugar e não o faça perder tempo. Na Bourgogne, não se aplica a regra da Toscana, mas não pude deixar de pensar nisso, ao sair, às 11 horas da manhã de uma terça-feira de outubro da degustação de mais de 20 rótulos do Domaine Fourrier e de seu braço de negociantes. Bebi todos.
Jean Marie Fourrier assumiu o comando do Domaine em 1995, depois de um estágio de três anos no fim da década de 1980 com a lenda Henri Jayer, do qual se lembra mais dos esporros levados do que dos ensinamentos recebidos. Ao contrário de Jayer, não usa 100% de madeira nova, Fourrier busca usar 20% no máximo em cada um de seus vinhos, sejam eles apelações village, sejam grands crus.
Pouco conhecido nos restaurantes e nos cavistas da França, fora do radar dos guias franceses, ele tem seus vinhos disputados no mundo inteiro. Agora a tarefa de comprá-los tornou-se mais fácil: em 2011, ele adicionou um braço negociante, com foco em comprar uvas de terroirs em Chambolle-Musigny, Vosne-Romaneé e ampliar sua coleção de grands crus. Assim Fourrier hoje produz no lado negociante alguns reputados vinhos: faz Amoureuses, Chambertin, Charmes-Chambertin, Latricières. Os vinhos estão um pequeno degrau abaixo dos do Domaine, mas daqui uns anos talvez estejam no mesmo patamar.
Na didática e extensa degustação da safra 2016, em barril, algumas estrelas se destacam. O Gevrey Chambertin Vielles Vignes, de vinhedos plantados entre 1928 e 1955, é um dos melhores villages de toda a Bourgogne, refinado, profundo, gastronômico e o mais fácil de ser encontrado no mercado (o Domaine tem vinhos vendidos desde o fim de 2020 no Brasil pela clarets.com.br).
O Aux Échezeaux proporciona um vinho mais fácil, mais redondo. O Vougeot Petits Vougeots vem de um vinhedo bem perto de Amoureuses, com alguns vinhedos com mais de 80 anos. O Chambolle Musigny Les Gruenchers conjuga o lado mineral (terroir próximo de Fuées) com a delicadeza de Charmes, outro vizinho.
Entre os premiers crus de Gevrey, o Goulots se destaca pela mineralidade, o Combe aux Moines, pelo lado mais masculino e animal, o Cherbaudes, pela elegância, o Champeaux, pela concentração fruto dos vinhedos com quase 100 anos de vida, e o estupendo Clos Saint Jacques, pela complexidade. Um dos cinco proprietários desse mítico terroir, que produz um vinho que para muitos é um grand cru, o Saint Jacques de Fourrier tem algumas uvas plantadas em 1910, o que permite, em alguns casos, como na safra 2015, produzir algumas poucas garrafas de Clos Saint Jacques Vignes Centenaires. Ele é o menor produtor da apelação, com 0,89 hectares. Aqui está o grande rival do Rousseau, em um estilo bem diferente. Provocação: Fourrier é Mugnier, Rousseau é Roumier?
O Griottes Chambertin, um dos mais raros grands crus de Gevrey, cuja produção total soma 1000 caixas em um bom ano, tem toda a elegância desse terroir, em um estilo diferente do produzido pelos Dugats. A paleta dos grands crus, ampliada pelo lado negociante, tem dois destaques: o Amoureuses (sim, para mim é um grand cru, apesar de a legislação dizer que não), um vinho que ainda ganhará muito com as mãos de Fourrier, e um grandioso Chambertin.
Não sei por quê, mas minha sensação foi próxima à que tive quando visitei Frédéric Mugnier, o que não pude deixar de compartilhar na visita. Os vinhos de Fourrier são sutis, delicados, elegantes, emocionantes, não têm peso, nem álcool, que são poemas líquidos e que integram uma partitura, cada um compondo uma música de uma trilha sonora criada por um maestro. Assim como não se jogam fora livros que fizeram sua vida, não se deixam de lado amizades de anos, não se esquecem músicas da adolescência, não se cospem vinhos de gênios.