Nicole Lamarche e os vinhos incomuns

Terra do Domaine de la Romanée Conti (DRC), do mítico Domaine Leroy e de um punhado de outros viticultores lendários, é difícil discordar do ditado bourguignon que aponta que em Vosne-Romanée não existem vinhos comuns. Com 68 hectares de vinhedos, a cidade com pouco mais de 450 habitantes conta com oito grands crus, sendo quatro deles monopólios de três Domaines: Romanée Conti e La Tâche, ambos do DRC, La Romanée, de Louis Liger Belair, e La Grande Rue, de François Lamarche.

Classificado como grand cru apenas na reclassificação feita em 1992, entre Romanée-Conti e La Tâche, segunda menor apelação do terroir com 1,65 hectares (La Romanée tem 0,85 hectares), o La Grande Rue sempre foi visto com desconfiança pelos críticos durante boa parte dos anos 80, 90 e início dos anos 2000. Não havia ali a mesma preocupação com os vinhedos e com o vinho que os seus vizinhos ilustres tinham. Resultado: os vinhos de Lamarche eram deixados de lado e seus preços eram uma fração em relação ao outros tão famosos. Chegou-se a brincar que era preciso uma reforma agrária para distribuir o terroir para mãos mais talentosas.

Em 2007, Nicole Lamarche assumiu o comando do Domaine. Começou a imprimir seu toque em cada um dos vinhos, reduziu a quantidade de madeira nova nos vinhos, vinificando seu grand cru com apenas 50% de novas barricas na safra 2016. Passou à biodinâmica. Comprou mais barris de François Frères e menos de Rousseau. A ideia é que os vinhos falem mais do que falavam, que transpareçam suas qualidades. “A ideia é fazer vinhos elegantes, finos”, diz ela entre sorrisos, praticante de krav maga, a arte marcial desenvolvida pelo exército israelense.

Com a maior parte dos vinhedos village e premiers crus plantados em 1969 e com os grands crus com quase 40 anos de idade, Nicole trabalha com um dos mais completos de portfólios existentes em Vosne-Romanée. Além de um Vosne Village, ela oferece quatro premiers crus: o Les Suchots, o Les Malconsorts, o La Croix Rameau e o Les Chaumes. De grands crus, além do la Grande Rue, tem o Les Grands Échezeaux, o Échezeaux e o Clos de Vougeot.

A safra 2016 trouxe perdas para o Domaine, mas é classificada por ela como uma safra clássica, talvez não com o apelo imediato dos 2015, mas um ótimo ano, talvez como 2010 e 2009. O Vosne Romanée village é um vinho elegante, profundo. É difícil percorrer os premiers crus e escolher um favorito: o Suchots é marcado pela finesse e elegância, uma feminilidade oriunda da proximidade com Romanée Saint Vivant e Échezeaux; o Malconsorts, mais masculino, tem a profundidade que se espera desse terroir colado ao La Tâche; o raro La Croix Rameau, de minúscula produção (0,2 hectares) um enclave de Romanée Saint Vivant, alia potência e elegância; o les Chaumes é o mais abordável quando jovem. Em Nuits Saint Georges, ela ainda faz o Les Cras, um premier cru perto da fronteira com Vosne Romanée.

Subindo mais um degrau, estão os quatro grands crus. O Les Grands Échezeaux é um vinho desafiador, difícil, com certa dureza, que demanda muito tempo para ser bebido, como pede esse terroir, já o Clos de Vougeot é um vinho mineral, mas as estrelas são o Échezeaux e o La Grande Rue. O primeiro é um vinho que até hoje, quase dois meses depois da degustação, ainda o tenho na memória e nas papilas. “Sexo na taça”, diz Nicole, ao ver meu rosto depois de bebê-lo. Apenas o aroma do La Grande Rue é suficiente para informar ao cérebro que se trata de um grand cru de Vosne, com seus aromas de incenso, especiarias asiáticas e um leve defumado. Na boca, tem expansão e persistência e camadas e camadas profundas de sabores.

Ao ler o livro “The Pearl of the Côte”, do crítico Allen Meadows, da excelente e confiável Burghound, Nicole resolveu criar uma outra vinificação do La Grande Rue, chamada de Cuvée 1959, ano em que houve uma troca de vinhedos entre o Domaine e o Domaine de la Romanée Conti. O primeiro trocou 0,469 hectares de vinhedos de sete parcelas de Gaudichots e duas de Échezeaux por três parcelas de 0,1 hectare de La Grande Rue e 0,048 hectares de les Guadichots. Apesar da diferença nas áreas, Henry Lamarche e Henri-Gaudin de Villaine declararam que as áreas trocadas tinham o mesmo valor. Nicole percebeu que as parcelas de Les Gaudichots foram plantadas em 1933 e que não tinham sido replantadas. Ela então resolveu vinificá-las em separado. “Há diferenças entre os dois vinhos”, aponta.

“Qual seu preferido?”, pergunta a Guria. “Acho que é preciso comprar todos para tirar uma nova prova”, respondo. Nicole ri. Não há mais dúvidas: ela posicionou o Domaine Lamarche entre os melhores da Bourgogne, com uma constelação de estrelas. O lado ruim do sucesso é o preço. Em Paris, Marco Pelletier, dono do Vantre, já reclama que a safra 2015 está com preços 30% maiores do que a anterior. Na terra em que não existem vinhos comuns, Nicole Lamarche faz história, com vinhos puros, complexos, elegantes e refinados, cuja persistência na memória dura muito mais do que um voo para a França.

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