Périplo pela Bolívia em São Paulo

Por Vladimir Goitia

Afinal, qual é o prato típico da Bolívia? O país possui alguma identidade em sua culinária? Tenho quase certeza de que ninguém conseguirá responder, ou pelo menos não conseguirá uma resposta clara sobre isso. Talvez porque este seja um dos países mais pobres do mundo e um dos menos conhecidos da maior parte dos mortais, principalmente dos brasileiros, que parecem estar de costas para esse seu vizinho da América do Sul.

De qualquer forma, basta dar uma boa pesquisada sobre a base da culinária boliviana para descobrir que a batata (pelo menos 200 tipos), milho (algumas dezenas de variedades), quinoa (também outras dezenas de tipos), carne e pelo menos mil tipos de “ajíes” (pimentas), entre outros, são os principais ingredientes dos pratos típicos bolivianos. Isso sem falar das também dezenas de cores de cenouras

Com base no protagonismo desses produtos nativos, sem a introdução de absolutamente nenhum tempero estrangeiro que não faça parte da cultura boliviana, até mesmo os poucos restaurantes de renomados chefs locais preferem preservar as tradições ancestrais e indígenas no preparo de seus pratos, fazendo explodir no paladar sabores tradicionais daquele país.

Com este antecedente, e levando em conta os preços acessíveis para qualquer bolso, vou centrar minha opinião em pratos populares de uma das regiões onde algumas centenas de estudantes brasileiros decidiram cursar medicina para fugir das provas do vestibular ou do Enem: Cochabamba. Alguns pratos “cochabambinos”, como o Ch’ajchu (pronuncia-se tchajtchu) e o Silpancho, não podem deixar de ser degustados por quem visita esse Departamento (Província) que se encontra na região central do país.

Os principais ingredientes do primeiro são batata, “chuño” (batata desidratada), pedaços de carne de boi devidamente martelados, fava, ovo e queijo. Por cima, para dar aquele toque colorido, o prato vem regado com uma salsa de “ají” amarelo ou vermelho e, finalmente, com outra salsa a base de tomate e cebola roxa picados em cubinhos. Por ser um pouco picante, não tem como dispensar a companhia de uma boa cerveja, ou até de “chicha” (pronuncia-se tchitcha, bebida fermentada a base de milho com baixo teor alcoólico). Trata-se de um prato que não pode ser comido por partes. Isto é, botando todos esses ingredientes na boca por separado. O que deixa apetitoso esta iguaria é a mistura de todos eles. Daí que algumas pessoas chegam a aplastar a batata para poder levá-la à boca com pouco de fava, carne, queijo e, principalmente, o ají.

Vale ressaltar que a batata praticamente entra em todos os pratos típicos da culinária boliviana. O tubérculo surgiu nos Andes, onde começaram a ser cultivado há milhares de anos. Há divergências, sobre o local exato. Alguns estudiosos dizem que 99% das batatas no mundo descendem de uma espécie cultivada há 10 mil anos em uma ilha na costa do Chile. Outras fontes afirmam que as primeiras batatas vieram da região central do Peru, onde hoje existe um centro internacional que estuda esse tubérculo e diz que só na América Latina existem pouco mais de 3,5 mil variedades.

O certo é que a batata deu também origem ao “chuño”, um tipo de batata que começou a ser desidratado pelos antigos habitantes dos Andes, principalmente nas regiões de Tiahuanaco (lugar arqueológico inca na Bolívia) e na meseta do Lago Titicaca, que empregavam método de liofilização ao relento para poderem conservar esse alimento. Ainda hoje o “chuño” é feito assim nos lugares mais inóspitos do país.

É importante também levar em conta que a Bolívia não tem nenhum Alex Atala, e muito menos um Gastón Acurio, que comanda um dos mais badalados restaurantes do mundo em Lima (Astrid y Gastón). Daí que os pratos servidos na maior parte dos restaurantes do país – não os badalados – não têm aquela sofisticação visual que costumamos ver em locais chiques. E mais, na Bolívia é comum o prato vir cheio, quase caindo pelas bordas, suficiente para alimentar duas ou três pessoas.

O Silpancho, por sua vez, é praticamente coberto por um tipo de enorme bife à milanesa, mas bem fininho e montado por ovos fritos com gema mole, além de uma salsa de tomates, “locotos” (outro tipo de pimenta) e pimentões picados. Por baixo dessa apetitosa carne empanada está o arroz branco e, claro, não poderia faltar a batata. Neste caso, frita e crocante. Originalmente, o prato não levava nem arroz, nem ovo. Com o tempo, foram acrescentados estes dois ingredientes. Em Cochabamba, é comum encontrar locais dedicados exclusivamente à preparação do Silpancho, que vem da língua quéchua “Silpanch’u”, que quer dizer carne aplastada e fina. À noite, são facilmente reconhecíveis pelos anúncios com luzes incandescentes que os caracterizam.

Agora, quem se animar a enfrentar a altura de quase 4 mil metros de La Paz, onde times de futebol prefeririam fugir que nem o diabo da cruz, pode ir de olhos fechados para o Gustu (sabor, na língua quéchua), restaurante de luxo criado pelo dinamarquês Claus Meyer, idealizador do Noma, considerado o melhor restaurante do mundo quatro vezes no 50 Best Restaurants. Enquanto Brasil, Argentina e Peru fazem parte da cena alimentar mundial, a Bolívia ainda é uma ilustre desconhecida, já que ninguém, ou poucos, poderá nomear alguns pratos bolivianos clássicos, e muito menos chefs bolivianos.

Mas Meyer foi atraído não pela culinária autóctone, mas pelo potencial dos alimentos e ingredientes bolivianos. Por que a Bolívia? Se você tem acesso a uma grande diversidade de produtos desconhecidos, então você tem uma forte chance de encontrar algo que possa ter interesse global, explicou ele quando de sua decisão. Além disso, o Gustu tem um programa social que oferece capacitação e treinamento gastronômico a crianças e jovens pobres, incorporando atividades comerciais a partir da implementação de modelos de negócios inovadores como restaurantes comunitários, alimentação para funcionários de fábricas e comida para viagem, entre outros.

E, por fim, o Gustu se vale do conceito “quilômetro zero”, que pode ser interpretado como “a distância entre o local de produção de um determinado alimento e o consumidor final”. Ele é utilizado para calcular o impacto ambiental, inclusive do aquecimento global. Para isso, são contados todos os eventos poluentes de produção, embalagem, transporte, e até os que são causados pelo meio de transporte que o consumidor usa para ir comprar determinado produto. Por isso, o restaurante de Meyer em La Paz só usa produtos locais, tanto para seu cardápio de comidas como para o de bebidas.

Aqui em São Paulo, tanto o Ch’ajchu como o Silpanchu é possível encontrar em quase todos os restaurantes bolivianos na Rua Coimbra, conhecida como “little Bolívia”, no bairro do Brás, próxima à estação Bresser do Metrô (linha Vermelha). Lá é o ponto de encontro dos milhares de bolivianos que moram em São Paulo. Na rua, praticamente só se fala em espanhol, e até os cartazes do comércio está nessa língua. Aos domingos, outro reduto boliviano onde é possível degustar outros pratos típicos, além das tradicionais “salteñas” (empanadas de carne e frango), é a feira da Praça Kantuta (flor-símbolo da Bolívia), no Canindé.

A dica é ir ao El Campeón, no coração do Brás, na Rua Coimbra, 82.

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