Não sei por quê, mas com antepassados italianos, alemães e do interior de São Paulo na família, a culinária chinesa sempre marcou presença na minha infância. Levado pelos pais para comer no saudoso China Massas Caseiras, um sobrado de dois andares em Pinheiros, eu gostava de comer gyozas, macarrão com molho chinês e outros pratos que eram feitos por uma família que tinha vindo da China. Depois o restaurante mudou de mãos, a comida decaiu, até seu fechamento há cerca de três anos.
Idas à fisioterapia e à ginástica podem render mais que correção de postura. Numa dessas, conheci Alex Sun, arquiteto formado pela USP, que, depois da revolução de Mao, veio com a família para o Brasil na década de 1960. O gosto pela comida fez com que ele dissesse que seus pais eram amigos dos antigos donos do China Massas, um dos poucos endereços frequentados por eles, que sempre privilegiaram as massas frescas e os ingredientes bem selecionados.
Alex tem aberto sua casa para amigos em jantares em que replica as receitas caseiras e de infância, uma maneira de a história familiar não se perder. Já disse, em “A Tabacaria”, Fernando Pessoa: “Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.”
Nesse encontro, ele preparou algumas receitas. De entrada, o ovo já pré cozido e descascado, cozido em fogo baixo por 35 minutos no caldo que cozinhou a carne (músculo), fatiada em pedaços. “Em casa a gente sempre cozinhou o ovo junto com carne ou frango para ganhar tempo e gosto. A geladeira chegou nos anos finais da minha infância.”, diz Alex.
A maior surpresa, jamais experimentada por nenhum dos convidados, foi o ovo de 100 dias ou PIDAN na fonética chinesa, conhecido em inglês como Preserved Egg Duck, que é preservado em uma mistura de cal e especialmente casca de arroz, além do barro, na mistura que envolve o ovo. Nesse caso, foi o único prato que não foi preparado pelo anfitrião, mas comprado em uma casa na Liberdade. O gosto tem uma certa mineralidade, lembra sangue. A salada de orelha de pau com agrião cozido (para tirar seu ardor) terminou a primeira etapa da refeição.
O prato principal é ainda mais afetivo. Gyozas de peixe, receita da China setentrional e preparada pelo pai de Alex, que nasceu em Yantai, na província de Shantung, colada ao Mar Amarelo, são servidos. Com um leve processo de cocção, para realçar a leveza e o sabor da pescada usada para recheio, eles são um prato raro de se encontrar em qualquer restaurante de São Paulo. “A China Massas Caseiras fazia nos anos 80, é um prato para se comer fresco”, aponta Alex. Para acompanhar, o riesling da Ernst Loosen, a prova de que Alemanha e China estão quilômetros distantes no mapa, mas quando o assunto é enogastronomia caminham lado a lado. A acidez da riesling e um certo açúcar residual permitem que as papilas passeiem pela variedade de pratos chineses, que mesclam frutos do mar e carnes, molhos agridoces e ácidos.
Para finalizar a refeição, um toque brasileiro: abacaxi com raspas de limão taiti e chá de jasmin. Por uma noite, Brasil e China ficaram perto, duas infâncias, uma brasileira e uma chinesa, estiveram lado a lado.