Pelos Vales Calchaquíes

 

O milagre dos vinhos de altitude que brotam do deserto saltenho

Por Lúcio Mattos

O viajante atento que chega à vila de Angastaco pela Ruta 40 tende a notar a capelinha
na beira da estrada, bem no alto de uma colina. O que chama a atenção não é a
construção modesta de paredes caiadas, que contrasta com o céu azul do deserto, mas o
sinal que marca o santuário: Gruta Difunta Correa. Lá dentro, uma imagem de cerâmica
protegida pelo mostruário de vidro representa uma mulher deitada trajando um vestido
vermelho sangue e com um seio descoberto, ao qual uma criança se agarra e parece
sugar avidamente.
Reza a lenda que a defunta em questão se chamava María Antonia Deolinda Correa,
uma jovem que decidiu ir atrás do marido recrutado para lutar na guerra civil argentina
durante a década de 1840. Carregando seu bebê recém-nascido nos braços, seguiu o
exército até que seus mantimentos e a água acabaram em meio à desértica zona da
província de San Juan, onde ela acabou morrendo de exaustão. Seu corpo foi encontrado
por gente que passava pelo lugar tempos depois, com a criança ainda viva e grudada ao
seio direito, nutrida pelo leite que o cadáver continuava a produzir mesmo depois da
morte. Depois disso, o local foi assinalado com um altar e María se transformou na
figura religiosa que ainda atrai centenas de milhares de fieis na Argentina, mesmo sem
ter sido reconhecida como santa pela Igreja Católica. E o que isso tem a ver com o
mundo do vinho? Correndo o risco da analogia fúnebre, a produção vinícola na
desértica região de Salta, a segunda maior da Argentina (atrás apenas de Mendoza), é
um feito que não fica muito distante do milagre do leite vindo do além.
Localizada cerca de 200 quilômetros ao sul da capital, a cidade de Cafayate é o
principal centro do vinho na província, uma história que começou com a chegada dos
dominadores espanhóis marchando do Peru, em 1535. Vinte anos depois, o conquistador
Francisco de Aguirre encomendou as primeiras cepas, vindas do Chile, e encarregou um
padre de plantar as vinhas em diferentes partes da região. O aperfeiçoamento do cultivo
coube aos jesuítas, que anos depois instalaram uma bodega para produzir vinho de
missa. A produção comercial teve início só no século XVIII, em propriedades familiares
que usavam as mesmas uvas criolas introduzidas pelos espanhóis – só cem anos depois
é que chegariam as variedades francesas, como as tintas Malbec e Tannat. À primeira
vista, a produção de vinho em meio ao deserto que domina esses vales e montanhas
parece tão improvável quanto uma defunta dar de mamar. No entanto, acontece.
Ao contrário do que o senso comum faria pensar, as condições naturais dos Vales
Cachalquíes e da Quebrada de Cafayate, as duas principais zonas produtoras,
mostraram-se ideais para fermentar vinho de alta qualidade em todos os quesitos. Os
solos arenosos, constituídos na maior parte por areia fina e subsolo pedregoso, garantem
excelente permeabilidade e a lixiviação dos sais prejudiciais às videiras. São solos
profundos, quimicamente pobres em nitrogênio e fósforo, mas bem abastecidos de
potássio e com pouca concentração de matéria orgânica. Em outras palavras, permitem
que o desejo dos experts vinicultores se realize a pleno: a raiz da vinha precisa lutar
incessantemente contra a pedra para produzir boas uvas.

 

O segundo quesito de excelência é a elevada amplitude térmica da região, nunca abaixo
de 16 graus centígrados no verão e superando os 23 graus no inverno. A enorme
diferença de temperatura entre o dia e a noite – que pode alcançar 38 graus no início da
tarde e baixar para 12 graus quando o sol se põe – assegura que todo o trabalho que as
plantas fazem durante o dia, fotossintetizando a pleno e nutrindo-se de minerais, não se
perca à noite. O choque térmico força as folhas das videiras a fechar seus estômatos até
que o calor retorne ao amanhecer, com o que os frutos não só ganham substâncias, mas
as conservam, resultando em uvas pequenas e com alta concentração de aromas e
sabores.
O clima ensolarado e seco é o terceiro fator positivo. Com 340 dias de sol por ano e
muito pouca chuva, entre 80 a 180 milímetros anuais, a hidratação dos vinhedos pode
ser totalmente controlada. Em outras palavras, a quantidade de água recebida pelas
vinhas é decidida pelo vinicultor, não pela natureza. Na maioria das vezes a água vem
das montanhas, deslizando morro abaixo e se infiltrando pelo solo, formando fluxos que
lá são chamadas de acequias. Nos vales, os produtores construíram um labirinto de
canais de irrigação de pedra ao longo dos séculos, que possibilitam a tradicional
irrigação por gravidade. Os vinhedos mais modernos já utilizam sistemas de
gotejamento, com canos de borracha servindo individualmente as videiras.
Mais além do clima e do solo, o diferencial dos vinhos da região é a altitude – ali se
localizam os vinhedos mais altos do mundo, partindo de 1.660 metros em Cafayate,
passando pelos 2.280 de Cachi e chegando aos 3.015 de Payogasta, um pouco mais ao
norte. Como comparação, as uvas da Rioja, na Espanha, são cultivadas a uma altitude de
700 metros; em Bordeaux e na Borgonha, na França, a 600 metros; na Toscana italiana,
a 500 metros; e no Vale de Napa, na Califórnia, não chegam aos 300 metros.
Atualmente há dezenas de vinícolas (ou bodegas) espalhadas por toda a zona, de
produtores artesanais e boutique aos grandes exportadores. As variedades tintas mais
conhecidas estão quase todas presentes, com destaque para a onipresente Malbec. O
vinho emblemático da província de Salta, porém, é o Torrontés, produzido de uma cepa
autóctone argentina proveniente do cruzamento da Moscatel de Alexandria e a Criolla
Chica. O resultado é um vinho brilhante e transparente, ao qual os saltenhos gostam de
se referir como “El mentiroso”, por ter um aroma acentuadamente doce no nariz que não
se revela no paladar, mais para o frutado e aromático.
Cardones, guanacos e vinho
A porta de entrada da região é a capital provincial, Salta, uma cidade de cerca de 500
mil habitantes que tem por atração um agradável centro colonial. Na culinária de
influência andina o destaque fica com as empanadas (ou salteñas, como eles preferem),
que por lá são preparadas com carne picada, não moída. Salta já é servida por um voo
direto de São Paulo, via Aerolíneas Argentinas, além de diversos horários partindo de
Buenos Aires. De lá a melhor alternativa é alugar um carro.
Para chegar a Cafayate há duas opções. A mais confortável é tomar a totalmente
asfaltada Ruta 68, enquanto a mais aventureira segue pelas Rutas 33 e 40, percorrendo
boa quilometragem de estradas de terra em um cenário desértico `a la Breaking Bad.
Minha recomendação é ir por uma e voltar pela outra.

Na opção de começar pela mais precária, a primeira parada é Cachi, alcançada depois de
uma viagem de 160 quilômetros que não se cumpre em menos de três horas e meia. O
prêmio é cruzar o Parque Nacional Los Cardones, nomeado em homenagem aos cactos
gigantes que brotam no meio do deserto, cujos troncos historicamente são a principal
fonte de madeira local, largamente empregada no artesanato e até no teto das antigas
igrejas jesuíticas. Com sorte, é possível ver alguns guanacos cruzando a estrada ou
procurando o que pastar na secura do planalto.
Cachi é uma cidadezinha de 2.600 habitantes, a quase 2.300 metros de altitude, e é o
maior centro turístico dos Vales Calchaquíes – a sensação, porém, é de que ainda está
vivendo a primeira onda de crescimento. A maioria dos visitantes está só de passagem,
mas vale ficar um ou dois dias por ali. Há vinícolas grandes e pequenas. A mais próxima da vila é a Puna, com 19 hectares de vinhedos distribuídos pelo vale ao pé das
montanhas. A colheita é toda manual, com produção de 225 mil garrafas no ano
passado, utilizando seis cepas tintas tradicionais (Malbec, Cabernet Sauvignon,
Cabernet Franc, Tannat, Syrah e Tempranillo) e três brancas (Torrontés, Chardonay e
Sauvignon Blanc), que resultam em 16 vinhos diferentes.
Os produtores de vinho de Cachi desenvolveram um sistema inteligente de distribuição
de água para irrigação, baseado em uma cooperativa criada por eles mesmos. Pelo
acordo, cada vinícola ou pequeno produtor recebe água a cada 15 dias, duas vezes ao
mês. Nessas datas, cada um tem o direito de desviar uma acequia para sua propriedade e
usar toda a água que desejar (inclusive armazenando volume em cisternas, se tiver
estrutura para tanto) – caso da Puna.
Depois de Cachi a parada seguinte é Angastaco, um povoado de 900 moradores mais 86
quilômetros ao sul, jornada de duas horas e meia pela poeirenta Ruta 40. Além da
capela da Difunta Correa, vislumbra-se um cenário desértico quase lunar no caminho
para as vinícolas. Antes de chegar na vila, vindo de Cachi, há a Bodega El Cese, um
produtor boutique que em 2022 lançou 70 mil garrafas ao mercado, com base em apenas
três uvas (Malbec, Cabernet Sauvignon e Torrontés). Se quiser uma experiência mais
original, no entanto, pergunte na cidade pelo senhor Jorge Flores.
Soy de Angastaco, me hicieron com bronca
Cheguei a ele por acaso. Caminhando pela cidade logo após o horário da siesta, não
conseguia encontrar nenhum comércio que vendesse vinho local – o mercado só tinha
uma duvidosa marca produzida em Mendoza que se vê por toda a Argentina,
comercializada em embalagem de leite longa vida. Perguntei no caixa onde eu poderia
comprar vinho e ele me sugeriu buscar “el señor Jorge Flores”. Seguindo as
coordenadas, eu imaginava encontrar uma pequena loja, mas acabei dando com a casa
de um produtor artesanal.
Fui recebido amigavelmente por um senhor de 71 anos, acompanhado por uma matilha
de vira-latas. Ele me contou que produz vinho desde os 10 anos, ajudando o pai, que por
sua vez aprendeu com o avô. O senhor Flores planta uma única variedade de uva e
engarrafa um vinho caseiro que batizou de Agressivo. No verso da garrafa, encontra-se
a inscrição que traduzo do espanhol: “Sou de Angastaco, me fizeram com raiva, sou
agressivo… Até a última gota”. O aviso, porém, é pura broma – tanto pela amabilidade do senhor Flores quanto pelo sabor delicado do vinho, um Malbec jovem, frutado e encorpado, mas nem um pouco agressivo ao paladar.


Enfim Cafayate
Depois de Angastaco, chegar a Cafayate dá a sensação de retorno à civilização. Com
quase 14 mil habitantes, a cidade é muito bem servida de restaurantes, lojas de vinho e
inúmeras bodegas para visitar, inclusive dentro do perímetro urbano. Há grandes e
pequenas, mas a dica que vale para todas é reservar antecipadamente. Sem isso você até
poderá visitar a vinícola, observar os belos cenários e comprar vinho, mas a participação
em um tour e degustações não são garantidas.
Pelo cenário, uma opção interessante é a Finca las Nubes, que fica a uns 5 quilômetros
a sudoeste do centro, na estrada para Rio Colorado. Os tours saem de hora em hora, das
10h às 16h30 e os vinhedos pegados à encosta da montanha oferecem uma vista
espetacular. Prepare-se, o atendimento não é dos mais gentis. Para gentileza e bons
vinhos, a sugestão é visitar a El Porvenir, uma bodega familiar cujo centro de produção
fica a duas quadras da praça principal de Cafayate, a Plaza San Martin. As uvas
processadas ali são provenientes de 110 hectares de vinhedos, distribuídos por cinco
fincas distintas. As experimentações com receptáculos de fermentação são variadas, dos
básicos tonéis de aço inoxidável aos barris de carvalho gigantes, passando até por
recipientes de cimento, ao estilo do que os antigos armênios faziam no Cáucaso quando
a humanidade começou a produzir vinho.
Para quem chegou a Cafayate via Cachi e Angastaco, a sugestão é retornar a Salta pela
Ruta 68, passando pela Quebrada de Cafayate. O cenário de areia e montanhas que o sol
vai colorindo em tons de adobe se encarregará de consolidar a certeza de que produzir
vinhos de altitude de alta qualidade no deserto é quase um milagre.

Por Lucio Mattos

1 comment

  1. Amei….vai ser super útil. A istoria da defunta nosso amigo Argentino já tinha contado. Pq perguntei sobre as garrafas de água jogadas nas capelas em Lá Rioja ele disse q era para a defunta matar a sede….kkk muito obrigada pelas dicas. Bjs

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